Rio - Moramos, eu e a Irene Ribeiro durante muitos anos, ao lado da tradicional quadra do Bloco Cacique de Ramos, no bairro do mesmo nome, na Rua Uranos. Da minha janela, dava pra ver a famosa tamarineira.
Éramos frequentadores assíduos do bloco. Irene ensaiava as princesas - a jornalista Glória Maria foi a primeira princesa do bloco - quando se aproximava o carnaval.
Eu tomava porres homéricos, às quartas-feiras, embaixo da tamarineira, enquanto rolava a roda de samba, comandada por Ubirajara Félix do Nascimento, o "Bira Presidente".
A casa é um celeiro de grandes compositores - artistas do verso como Almir Guineto, Deni de Lima, Beto Sem Braço, Neoci, Baianinho, Arlindo Cruz, Zeca Pagodinho e muitos outros - que faziam do Cacique de Ramos um ponto de encontro da arte do partido alto e do autêntico samba de raiz. O Cacique era uma festa.
Éramos muito amigos do pessoal. Principalmente, dos irmãos Bira e Ubirany, filhos do seu Domingos - que era amigo de Pixinguinha, Donga e Carlos Cachaça - e dona Conceição, filha de santo da famosa Menininha do Gantois.
Bira nasceu no samba. Aprendeu a tocar pandeiro com Honório Guarda. Mais tarde, conviveu com Aniceto do Império e outros que influenciaram a sua forma de tocar percussão. Fundou, junto com Ubirany, Almir Guineto, Jorge Aragão, Neoci, Sereno e Sombrinha, o Grupo Fundo de Quintal.
Entrevistei o grupo várias vezes, para jornal, rádio e revista. Entrevistei, também,Arlindo Cruz, Sombrinha, Jorge Aragão e Almir Guineto, quando deixaram o grupo e partiram para a carreira solo.
Um dia, Bira me ligou perguntando se eu não queria ser presidente do Cacique de Ramos. Levei um susto! "Tá maluco, Bira?"
"Por que não? Você é dono de boteco, empresário de grupo de pagode e gosta de samba. Tudo a ver", disse o 'Presidente'.
Na época, o Fundo de Quintal viajava muito. Europa, Japão, Estados Unidos... e ele não estava conseguindo conciliar a carreira no grupo com a presidência do bloco.
Marcamos uma reunião em seu apartamento, na Vila da Penha, próximo ao Largo do Bicão. Bira nos recebeu com a simpatia de sempre, num apartamento aconchegante, cheio de lembranças de viagens e imagens de santos.
Bira é muito religioso. Católico, filho de uma mãe de santo, faz orações todos os dias em sua casa. Quando acorda e antes de dormir.
Tomamos umas cervejas - eu e a Irene; Bira é um boêmio que não bebe (exceto o cálice diário de vinho do Porto). Lá pelas tantas, Bira já estava quase me convencendo a aceitar a empreitada.
Comecei a vislumbrar ali a possibilidade de ganhar uma grana com o negócio. Afinal, o Cacique ficava lotado nos dias de roda de samba. Foi quando o Bira decretou: só não vou te dar o bar. É dali que sai o dinheiro para manter o bloco.
Bom, restava a bilheteria, pensei.Então, como se lê-se o meu pensamento, ele mandou: "Outra coisa, não quero que cobre ingresso. A roda de samba sempre foi grátis".
Eu olhei pra ele e disse: "Porra, Bira! Como é que eu vou ganhar dinheiro com esse negócio?".
Rimos muito, os três. Foi aí que eu entendi: o Cacique de Ramos não é um negócio. É uma missão.
(* Jornalista e escritor)
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