Publicado 04/02/2022 06:00
O recente assassinato brutal do congolês Moïse Mugenyi, 24 anos, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, Brasil, escancara a face mais cruel do racismo: a morte violenta e intencional. Em todo o mundo, esse fenômeno expressa a necropolítica como base estruturante do capitalismo em seu voraz apetite pela carne negra. É o terror instituído como política global.
Somos o combustível fóssil consumido em larga escala para garantir o desenvolvimento pleno do sistema capitalista, que se retroalimenta do sangue de pessoas negras como o jovem Moïse, seja pela violência ou pela miséria, a fome e doenças.
A história de Moïse denuncia essa realidade. Ele fugiu para o Brasil para sobreviver à fome e à guerra que assolam há décadas o Congo, e que têm como principal pano de fundo os interesses capitalistas no país, que guarda a maior reserva de diamantes do mundo. A cobiça representa mais um componente essencial na gramática da construção do terror racial contra os corpos negros.
O caso de Moïse não pode ser "mais um" na hecatombe negra brasileira. A cultura da criminalização da juventude negra pelo próprio Estado naturaliza, legitima e "autoriza" a generalização de ações arbitrárias e violentas contra os nossos corpos. Rigor e celeridade na investigação se fazem obrigatórios, para a identificação e responsabilização dos autores, assim como a sua devida caracterização e motivações.
Negra é a cor de mais de 80% dos assassinados pelo Estado no Brasil, que registra, de acordo com o Atlas da Violência 2021, do Ipea, uma estatística de homicídios cinco vezes maior do que a média global. Embora se verifique uma redução da taxa de homicídios nos últimos anos, observa-se o aumento da letalidade policial contra a juventude negra. Segundo o Fórum Nacional de Segurança Pública, das 47.773 mortes violentas ocorridas em 2019, 6.357 foram cometidas por policiais, o maior número desde 2013. Em relação a 2018, o crescimento de homicídios por policiais foi de 3%.
Nestes tempos em que o aparelho punitivo do Estado se fortalece e encontra apoio ainda nas camadas populares, percebemos como essa cultura genocida, materializada pelos paladinos da moral e dos bons costumes, identifica criteriosamente as suas vítimas e as executa sem nenhum receio de punição ou responsabilização.
Se a dor e o sofrimento negros são estrangeiros às sensibilidades e não provocam uma mobilização efetiva dos aparatos estatais necessários para frear a barbárie que é o genocídio negro, precisamos resgatar os nossos parâmetros ancestrais de humanidade, para a construção de novas possibilidades efetivas de uma luta antirracista.
A "carne mais barata do mercado" não pode ser a carne negra. Ter os nossos corpos como principais objetos de reproduções fascistas e genocidas não é mais uma opção. Para frear o terror racial e o racismo antinegro façamos o necessário, até o que possa parecer impossível.
Renata Souza é negra, da Maré, deputada estadual, líder da bancada do Psol na Alerj, doutora em Comunicação e Cultura
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