Publicado 16/02/2022 06:00
Enquanto ainda não conseguíamos olhar para a profundidade das feridas abertas pela barbárie a que Moïse Kabagambe fora submetido e outro homem negro voltando do trabalho, cansado, já na porta de casa onde ele provavelmente já se sentia mais seguro, deixa de prestar atenção no entorno para mexer na mochila. Procurando a chave? Nunca saberemos. Porque Durval Teófilo Filho foi cruelmente alvejado por três tiros disparados pelo vizinho branco, que nunca o tinha visto no condomínio em São Gonçalo, onde ambos moravam.
Aurélio Alves Bezerra, homem branco, militar da Marinha, de dentro do seu carro, não teve dúvidas, sacou sua arma e atirou no “ladrão” que sequer o tinha notado. Foram três tiros. Era para ter certeza que o corpo negro não se levantaria. Supôs que era um ladrão. Não havia nenhum indício de que ele corria perigo, Durval sequer olhava na direção do carro do “senhor branco” e mesmo que olhasse, ninguém está autorizada pelas leis vigentes no Brasil a executar outra pessoa, embora o Estado o faça todos os dias, vide Jacarezinho, Salgueiro, etc. Por que Durval mexendo nos próprios pertences oferecia perigo?
Não importa! No Brasil, um homem negro não pode ficar parado; não pode correr; não pode ter carro de alto padrão; não pode andar de moto com um amigo; não pode trocar o relógio que comprou para presentear o pai; não pode cobrar as diárias do trabalho feito; não pode ir à padaria comprar pão. Em qualquer situação a pele negra é alvo.
Não, esta não é a visão e o sentimento de uma mulher negra, nascida, criada e que teve seus filhos na favela do Borel. Não é a opinião de uma mãe favelada que já esteve na mira de um fuzil do braço armado do Estado com sua filha ainda na primeira infância nos braços, da mãe de um homem preto, cujo o coração só se acalma quando ele entra a salvo em casa, mesmo ele sendo um jornalista, com mestrado, que está doutorando e tem boa colocação no mercado de trabalho, ou de uma avó que se preocupa com o mundo em que seu neto preto está crescendo. São dados!
Estudo da Rede de Observatórios de Segurança, divulgado em dezembro de 2021, mostra que, no Rio de Janeiro, 86% das pessoas mortas pela polícia eram negras. Em 2020, foram 1.245 vítimas e das 1.092 com cor declarada, 939 eram negras. E não é apenas no Rio de Janeiro que aqueles com pele negra são alvo, o mesmo estudo apontou que em Recife, Fortaleza e Salvador 100% das vítimas da polícia eram negras.
Os dados do Atlas da Violência, divulgado em agosto de 2021, mostram que negros foram 77% dos assassinados no Brasil, em 2019, e que as chances de um negro ser morto violentamente são 2,6% maior que as de um branco. No Brasil, o racismo se manifesta com violência, com brutalidade, com a culpabilização da vítima. Foi o que os que vitimaram Moïse e Durval fizeram, depois de brutalizar Moïse “ele estava bêbado, incomodando” e após atirar três vezes em Durval, o agressor correu para a delegacia e se colocou como vítima.
Não basta exterminar o corpo físico, a desumanização e o assassinato da memória faz parte do ritual daqueles que praticam o racismo no Brasil. É inaceitável que a sociedade desse país que nós, negras e negros, construímos siga fingindo que o racismo não mata. Chega!!!!
Mônica Francisco é deputada estadual (Psol) e vice-presidente da Comissão de Combate às Discriminações e Preconceitos de Raça, Cor, Etnia, Religião e Procedência Nacional
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