Publicado 04/03/2022 06:00
Infelizmente, ainda é comum escutarmos que os desempregados, moradores de áreas de risco (encostas e margens de rios), pessoas em situação de rua, cotistas, bolsistas do Prouni, beneficiários do extinto Bolsa Família e do Benefício de Prestação Continuada representam uma massa de incapazes de emergir e vencer a “competição” da vida real. São adjetivados como preguiçosos ou questionados por viverem em tais condições. O argumento mais ou menos elaborado é resumidamente justificado e “geralmente” ancorado no conceito da meritocracia.
É curioso como a imprensa e a sociedade em geral constroem casos de superação quando, na verdade, tais exemplos evidenciam a falência das políticas públicas que, por consequência, é promotora de miséria e de atrasos no desenvolvimento de crianças, adolescentes e jovens, e do envelhecimento saudável neste país.
A pergunta que fica é: a meritocracia é promotora de desigualdades sociais ou trata-se de um mecanismo justo?
A pergunta que fica é: a meritocracia é promotora de desigualdades sociais ou trata-se de um mecanismo justo?
Seja qual for sua resposta, o fato é que você passa a se posicionar politicamente com um pensamento que eventualmente não fora formulado por você, ou seja, foi socialmente construído, entende?
Para mim, sem igualdade de partidas não há meritocracia, nem mesmo democracia. Vou além: a meritocracia é uma farsa que funciona como uma indústria, com produção em escala mundial, para o descarte de pessoas pobres. A verdade é que não tem meio termo: para quem defende a farsa meritocrática, a pobreza é trabalhada nas ambivalências, tais como criminalização ou glorificação.
É difícil, reconheço, ler histórias de superação e não se emocionar ou momentaneamente se iludir com a meritocracia. No entanto, esteja certo de que ela não é uma resposta paliativa, tampouco definitiva para as injustiças sociais. O que devemos descartar do repertório da humanidade não são os pobres e vulneráveis, mas o racismo, homofobia, xenofobia, feminicídio, machismo, preconceito de classes e as inúmeras formas de opressão.
Precisamos de uma sociedade onde não exista necessidade de competir em desigualdade de partida para obter bem-estar e reconhecimento social. É verdade que as classes mais vulneráveis possuem trabalhos mais penosos e gastam mais tempo de comutação. Essa população também possui os piores acessos e péssimas estruturas de apoio. Então, não sobra tempo para o desenvolvimento profissional, o que, praticamente, os condena a empregos precários, impedindo a mobilidade social.
Decerto, sabemos que a meritocracia engendra uma elite que se arvora em narrar que serve ao público quando, na verdade, se retroalimenta das vantagens que seus privilégios lhe conferem, isto é, podem largar na frente da maioria em qualquer circunstância, competição ou disputa. O problema é que isso é um sistema fechado. Trata-se de uma retroalimentação sistêmica viciosa em que as elites no passado receberam e atualmente entregam, por exemplo, Educação para seus descendentes de uma forma que ninguém mais consegue proporcionar. Essa Educação extraordinariamente incrível custa caro.
O mais curioso é que não para por aí, pois esse contingente privilegiado organiza o mundo do trabalho a seu bel-prazer, isto é, os trabalhos com melhores remunerações são quase exclusivamente vinculados às habilidades e competências que o ensino mais caro proporciona. E você, ainda acredita na meritocracia sem igualdade de partidas?
Allan Borges é mestre pela FGV, subsecretário de Habitação da SEINFRA.RJ e coordenador do Cidade Integrada.
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