Gabriel Chalita, colunista do DIADivulgação
Publicado 17/04/2022 05:00
Foi em uma páscoa da minha infância. O dia ia se acordando quando a procissão barulhou a nossa casa e fez com que fôssemos até a janela ver a vida. A vida havia vencido a morte. Era isso o que cantavam aquelas mulheres e aqueles homens com a alma lavada pela lembrança do mistério da ressurreição.

Abrimos a porta e fomos com eles.Minha avó, mulher das rezas e das simplicidades, perguntou se a páscoa não era mais importante que a sexta-feira santa. Eu era criança e me sentia grande com a confiança da minha avó. E disse que 'sim'. Que a páscoa era a maior festa do cristianismo. Ela prosseguiu querendo saber por que havia mais gente na procissão da morte do que na procissão da vida. Eu respondi que talvez não soubessem. E silenciei a conversa para cantar os cânticos bonitos com aquela gente de fé.

Os tempos foram me cumulando de experiências marcantes com a fé das pessoas. O que se sente é, talvez, mais elevado do que o que se tenta explicar.Fui estudando a razão sem desacreditar dos sentimentos. O que se sente é o que nos eleva para o lugar onde vão os sons das canções bonitas.

O mistério da páscoa não se explica com a razão. Nem da páscoa antiga com um povo desamarrando a escravidão e caminhando para uma terra prometida. Nem da nova com o Pregador do Amor, depois de pregado na cruz dos ódios e morto na mente perversa dos vazios, saindo do túmulo e devolvendo a luz aos dias.

A razão desconhece o que vai além dos sentidos. O imaterial só se alcança nos desprendimentos.Na minha infância, as canções sagradas já me explicavam isso. Hoje novamente é páscoa e a pergunta da minha avó me empresta outros significados. Por que nos alistamos na procissão dos mortos? Por que desprezamos o acordar das manhãs que nos convida à vida? Morremos antes da morte quando retiramos de nós a procissão do encontro. Só os encontros nos explicam a vida. Os egoísmos são falsas ilusões de que, se formos o centro, atingiremos a vitória.

A vitória de Cristo foi a vitória sobre o egoísmo. Antes dos acontecimentos finais, houve uma última ceia em que o partir do pão ensinou a comunhão, em que a humildade se ajoelhou para lavar os pés dos caminhantes. Há tanto de simbólico a ser aprendido no seio das religiões que é um desperdício desconsiderar a vida para se apegar à morte.

Morremos antes da morte quando julgamos e condenamos nosso irmão. Não foi Jesus quem morreu naqueles dias, foram os seus matadores. Todos eles. Desde os que espalharam as falsas mensagens aos que lavaram as mãos com medo da opinião da maioria. A maioria muda de opinião o tempo todo. Então, o melhor é limpar os ouvidos dos barulhos de ódio para escutar o som do silêncio e só depois cantar a canção correta.

Morremos antes da morte quando o sonho que nasceu, quando a gente nasceu, deixa de sonhar. E, iludidos, repetimos as ausências dos sonhos dos outros. É isso mesmo, quem não sonha quer destruir os sonhos dos outros. É preciso valentia para resistir. E é preciso lembrança, do que fomos um dia, antes de nos alistarmos à procissão dos mortos.

Minha avó já se foi há muito tempo. Morreu acreditando que não se morre. E eu acredito com ela. Quando morrer, não morrerei.A procissão da sexta-feira santa não é, então, a procissão dos mortos. É uma lembrança, apenas, da força dos que compreendem a própria missão. Mesmo na dor. Mesmo nas humilhações. Mesmo nas perseguições. Os risos falsos se dissolveram depois da verdade sair do túmulo. E o que se sabe hoje é que as perseguições injustas persistem, inclusive em nome de Deus.

Deus é amor. Simples assim. O diferente disso é desvirtuamento de quem usa incorretamente o nome santo para fortalecer o próprio nome. Erram, certamente.Nossa força vem do encontro.
Da procissão do encontro.

Feliz páscoa, feliz passagem. Que a liberdade vença toda as formas de escravidão. Que a vida vença todas as mortes antes da morte. E que uma canção bonita acorde o mundo para a beleza da procissão do amor.


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