Publicado 10/07/2022 05:00
Ele morava em um beco perto da rua onde eu morava. Era assustado, desde sempre. Não sei o que sabem as pessoas das vidas das outras pessoas. Eu nunca fui um entusiasta das futricas, das invasões desnecessárias em quintais alheios. Nunca. Mas, observador que sou da alma dos que encontro, queria encontrar em Juliano alguma explicação para tanto desamor.
Minha mãe me ensinou a rota do amor. E foi por ela que eu fui caminhando os meus dias. E foi por ela que eu fui desacreditando de outros caminhos. Meu pai, sabedor do que brota do amor, ensinou a enfrentar os egoísmos. O girar do mundo vai além de mim. Não sou o centro de nada a não ser de mim mesmo quando compreendo. Senão, me perco. Como Juliano.
Era um dia preenchido de vozes. A minha, entretanto, descansava. Eu apenas ouvia. Ouvi, assim, a dor de Maria, mulher de Juliano. Sem barulhos, a não ser os dos olhos olhando a vergonha do mundo nos dizeres de Juliano. Eu via ali a morte da gentileza.
O que dá a um homem o direito de riscar do dicionário de sua mulher a palavra felicidade?O que dá a ele o cultivo da estupidez, na voz, nos gestos, no comportamento?
Lembrei uma explicação bonita de uma antiga professora que nos ensinava os atributos iluminados do silêncio. Queria que ele silenciasse. Mas prosseguia ele, escravo de uma vontade desumana, justificando o injustificável corretivo na mulher. O que fez Maria? Foi estudar. E foi sem dizer onde ia. E foi sem dizer onde ia por medo do marido.
Um dia, sonhou ela em amansar as atitudes do marido. Sonhou, apenas. Morreu nela o futuro bonito que a infância inventa, mas não morreu por completo. E, por isso, quis estudar. Juliano julgou desnecessários o estudo e a mentira. Ela estava autorizada apenas a ir à Igreja e aos serviços que completavam o fazer doméstico. Comprar o que se deveria fazer para comer e o que se deveria usar para limpar.
Os dois tinham dois filhos. Os dois filhos já haviam deixado a casa e pouco voltavam, por pouco quererem ver a mãe sofrendo do pai. Uma vez, explicou ela ao filho mais novo, disse do calvário necessário, da impossibilidade de matar quem a matava. O filho inconformou o comodismo da mãe e decidiu partir.
Eu era um jovem estudante naqueles dias e olhava para Maria querendo desenterrar dela alguma força para a reação. E olhava, também, para Juliano. De onde vinha tanto acúmulo de azedume? Fui pesquisar. Encontrei ossos no caminho. A mãe abandonou o pai. O pai era descumpridor dos bons modos. Viu ele mulheres revezando com mulheres em casa onde o papel da mulher era o de dar prazer e o de silenciar vontades próprias. Viu machucaduras na pele e na alma. Viu o pai decidindo a sua violência. "Homem não chora", "Homem não fraqueja", "Cuidado com as mulheres". Filho único, odiou e imitou o pai.
E Maria? Também teve um pai pouco adepto às compreensões dos direitos dos outros. A mãe silenciou a esperança e viveu até o fim aceitando. Eram outros tempos. Morreu jovem a mãe. De alívio. E Maria conheceu, então, o medo e do medo não se afastou.
Ao filho mais velho, um dia, explicou que deixar o marido não era coisa certa, ele caminharia pior. Iria em busca. Nunca teria paz. Que o conselho mais sábio era aceitar. Que havia vidas piores que a dela. E que o choro já havia até se cansado. Quem chorou foi o filho de ver a mãe envelhecendo jovem.
Um dia, olhei nos olhos de Juliano. E ele olhou nos meus. Diminuí os passos e ensaiei conversa. Disse nada. Ele parecia perdido em rua conhecida. Foi andando em frente e, sem nenhum esforço, tombou. Morreu Juliano de doença de gente irritadiça. E findou no beco onde fez tantas malcriações.
Vi os chamados dos vizinhos. Vi Maria chorando com o corpo sem vida do marido. Desacreditei. Era dia de comemorar. Arrependi. Lembrei meu pai ensinando que não se comemora a morte, a morte se respeita. Foi ali, naquela rua, que me apaixonei por Maria. Onde ela encontrou lágrimas novamente? Enxuguei a sua dor e me ofereci para a ajuda.
Não foram fáceis os dias de sedução. Ela achava errado ter amor com alguém da idade dos filhos. Eu achava errado ela desperdiçar o que sentíamos. Tive que acalmar os dias, tive que plantar paciência até nos acertarmos.
No dia do casamento, eu olhava para a beleza de Maria, escondida nos sofrimentos, e prometia, a mim mesmo, a inauguração do tempo das gentilezas. Caminharíamos juntos na descoberta do prazer. Os seus filhos, antes desconfiados, sorriam o sol, depois da prolongada chuva.
Maria, na nossa primeira noite de amor, tremeu o medo, companheiro antigo. Expliquei que ele podia partir. Não dizendo. Tocando. Respeitando. Amando. Não desperdiçamos a poesia por nenhum instante e dormimos acreditando no amor.
Vi cedo Maria apressada em apressar o café. Busquei com delicadeza e ofereci mais de mim. E mudei o tom daquele dia. Servi eu o café. Ela sussurrou, "Tô tão feliz, já posso morrer". E eu disse com a autoridade dos que amam,"Se está feliz, agora é tempo de viver".
E foi assim que nos mudamos daquele beco e fomos viver em frente ao mar. O mundo é maior do que imaginamos. E há mais histórias bonitas do que aquelas que insistem em nos incomodar. E, quando alguém falar sobre a morte da gentileza, acredite não. Ela renasce nos inimagináveis instantes.
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