Publicado 16/10/2022 05:00
Fui à missa do dia de São Francisco, dia 4. O padre, jovem de tempo e maduro de pensamento, disse belezas sobre a vida do santo.O jovem de Assis que conquistou o mundo com o seu ingrediente humano de fazer experimentar o sagrado no alimento do amor. Cuidou ele dos que ninguém se dispunha a cuidar. Andarilhou pelas ruelas escuras da cidade e acendeu na história uma luz que dissipa as trevas - a luz da bondade.
Bondade teve comigo Dona Amélia. Meu Deus, foi há tanto tempo. Eu era menino ainda. E mais menino era meu irmão, Renato. Era um dia de missa, de quermesse, em uma Igreja que não ficava tão perto. Eu, já religioso, convenci meu irmão e fomos em direção ao alto da cidade. Entramos no ônibus. Tínhamos passe. O cobrador, sem muito cuidado, exigiu dinheiro. Nos finais de semana, o passe não valia. Eu não sabia ou não havia registrado na lembrança. Mostrei os bolsos vazios. Só havia um terço, presente de minha avó.
Meu irmão, com seus três anos, começou a chorar. A voz brava do cobrador, que exigia alguma providência, trouxe medo. Eu disse que desceríamos, então. Ele prosseguiu vociferando que, mesmo para descer, tínhamos que pagar. Então, o choro foi meu. Foi quando uma senhora deixou os olhos do livro que lia e prestou atenção. Pagou ela o nosso bilhete. Pouco dinheiro, muita generosidade. Viu o nosso nervosismo e nos convidou a sentar. Colocou meu irmão no colo e acalmou nosso medo. Ficou feliz, quando soube que estávamos indo à festa de São Francisco. Eu disse que tinha 9 anos e que gostava muito de reza. Ela sorriu o sorriso dos que enxergam esperança. Mudou o seu dia e nos acompanhou até a missa. Eu nunca me esqueci de seu gesto.
Contei para minha mãe, quando cheguei em casa. Ela primeiro ralhou dizendo que era só ter pedido o dinheiro e, depois, falou de Dona Amélia. Uma professora aposentada que perdeu, em um acidente, seu único filho e o marido. Que passou anos enlutada e que alivia a saudade contando histórias para crianças no hospital do câncer.O tempo vai se esticando e nos distraindo as vontades.
Quis ir até ela para agradecer. Levar um presente. Falar dos alívios, quando somos capazes de amar. Nunca fui. E já era jovem feito, quando soube do seu falecimento. Um pouco antes de minha mãe.
Invariavelmente, eu visito o seu túmulo no cemitério. Contrato o funcionário que deixa limpo e florido o túmulo da minha mãe para que faça o mesmo com o túmulo de Amélia. Sei nada dos segredos da morte. Ou da vida que prossegue onde não sei. Só sei que prossegue. Quando ando por entre tantas vidas que se foram, penso nos desperdícios. Já não tenho a idade de muito futuro. E, quando olho a passado, a saudade é sempre de bondades. Coisas servem para servir furtivos momentos. Sentimentos são os que permanecem.
Em mim, moram os dias bonitos em que fui cuidado e em que cuidei. De minha mãe, do meu pai, dos meus filhos, dos amigos que foram emprestando alegria aos dias. Coisas eu tive e deixei de ter. Brigas tolas também ocuparam algum pensamento. Passaram. No túmulo de Amélia, mora a lembrança de um dia de bondade. A missa em honra ao Santo que sempre devotei e o gesto de atenção que dissipou um gesto ruim. O nome do cobrador não ficou. O nome dela, sim.
O dia de São Francisco estava lindo. O silêncio do cemitério me explicava mais uma vez a vida. Tudo passa. As quenturas e até as friezas passam. Gosto de respirar a paz. De acreditar que não se termina por aqui o milagre do existir. Nos túmulos, os restos dos corpos que deram vida à essência humana. Olho para o céu e aceno, acreditando no que não posso compreender. Há tantos infinitos em mim que, quando sinto todo o resto se esvai. O canto melodioso dos pássaros me serviram de alguma explicação da natureza. Francisco de Assis viu beleza em tudo o que é obra do divino. E permaneceu.
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