Publicado 23/10/2022 05:00
João era o nome do meu tio. O mesmo do João, primo de Jesus, que anunciava no deserto.
Desde cedo, sempre imitei meu tio. Achava bonito o como ele embelezava suas falas, seus cotidianos. E sem exageros. Ele compreendia que o belo dizer tinha que ser natural como um canto bonito de um pássaro ou como um sussurrar delicado das águas lambendo as areias da praia.
Tocava violino o meu tio e talvez isso desse a ele uma sensibilidade maior. Na minha infância, eu ficava sentado embaixo de uma árvore vendo os seus olhos fechados e as suas mãos certeiras fazendo música na varanda grande da casa da minha avó. Era como se ele, como os pássaros, também voasse.
Tive um outro tio que era o oposto do irmão. Reclamador ininterrupto do viver. Agressivo. Causador de fraturas na alma da própria mãe. Nunca me esqueço de um dia em que ele voltou exultante de uma caça mostrando o animal defunto entre as mãos. Eu fechei os olhos, e ele gritou comigo temendo que minha compaixão pelo morto se transformasse em ausência de masculinidade. Saí da sala e fui brincar com Princesa, uma cadelinha de rua, adotada pela casa. Tio João sorriu para mim e contou histórias bonitas de homens valentes que amavam a natureza.
Os dois irmãos praticamente não se falavam. Tio João virou um homem importante. Enricou sem perder a humildade. Ajudava a cidade inteira. Era advogado e dividia a sua clientela entre os que podiam e os que não podiam pagar. Seus júris eram memoráveis. Leve nos ditos e certeiro na defesa incondicional da verdade. Explicou muitas vezes os riscos da mentira, da desonestidade. Minha avó, sorria com a alma pelas conquistas do filho. Do outro, ela rezava. Um dia haveria de vir um milagre e ele se consertar. O milagre nunca veio. E eu, depois de crescido, nunca quis conviver com esse tio. Viveu de mulher em mulher os discursos toscos dos machistas. Era racista também. E inventava histórias para justificar a injustificável superioridade de raças. Brigou nas profissões que abraçou e só não morreu na indigência porque o irmão, a quem tanto criticou, cuidou dele no final.
Ontem, tive um dissabor. Nada muito diferente dos dissabores que enfrentam os irmãos meus de humanidade que vivem no deserto dos pensamentos dos outros. Fui atacado por discordar de quem concorda com os discursos de ódio, fui atacado por não acatar os que desferem preconceitos. Confesso que a surpresa me deixou esvaziado de vontades. Pensei um pouco. Lembrei do meu tio. Imitei sua gentileza sem desdizer as minhas crenças. Sou dos que creem que as valentias forçadas nos forçam a demitir a razão. Sou um homem de afetos. Gosto dos encontros e aprendo com os diferentes.
Sou também músico. Ouço no piano, no som que construo, no dedilhar da minha alma, as almas da humanidade inteira. Os compositores que se foram moram em mim e moram nas canções. Os livros que leio, também. E também as lembranças. Não autorizo ninguém a sujar de arrogâncias meu dia. Polidez jamais será sinônimo de fraqueza.
Depois de encerrada a contenda, voltei para casa. O sol desse início de primavera era convidador de contemplações. Era quase o final do dia. O vermelho que pintava o céu explicava que o amanhecer não demoraria muito para convidar uma outra esperança a viver comigo. No fórum onde atuo como juiz, aceito a responsabilidade de diminuir as injustiças do mundo. Não quero jamais esquecer a razão que me fez, um dia, escolher a magistratura. Cada caso que decido sofro o sofrimento necessário para não permitir que o erro destrua a vida de alguém. Já ouvi desistências de amigos meus, descrentes de alguma mudança. "A mudança sou eu", respondo em cada caso que devolvo, à casa da felicidade, o que morava na rua da injustiça.
Chegando em casa, sentei ao piano e toquei uma música que meu tio gostava. Enquanto isso, recebi o beijo da mulher que eu amo e dos meus dois filhos, gêmeos, um se chama João e o outro José, o nome do meu pai. Meus filhos explicam para mim, desde os inícios, que o amor não tem fim. Feiuras no cotidiano? Não, definitivamente não permanecem.
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