Publicado 06/11/2022 05:00
Não sei por que foi esta parte que ficou em mim, no final do dia da aula de história.
Ana Maria é minha professora. Diz de um jeito que ajeita na gente a vontade de estudar mais. Tem ela alguns anos menos que eu. Voltei tarde para terminar o que antes desperdicei.Sim, a culpa foi minha. Fiquei curvado de medo de saberem que eu não sabia. E desisti.
Naquele tempo, a vida doía mais do que eu entendia poder suportar.Pobre e assustado, achava que não tinha direito a ter direitos.Minha mãe trabalhava em casa de família. Meu pai se descuidou da vida e anoiteceu antes do tempo.Foram dias de dizer palavras de dor. O ar de minha mãe parecia respirável, não era. Estava na casa do Ademir, seu patrão, quando a notícia da morte atravessou sua vida.Então, eu fui também trabalhar. E fui aceitar humilhações.
Eu sempre fui pequeno e ficava ainda mais, quando me diziam que a inteligência faltava em mim.Ademir era ríspido com a mulher, com os filhos, por que haveria de ser gentil com os empregados? Não poucas vezes, vi minha mãe aguentando a dor para não partir. Silenciosa, dizia nada dos gritos de correção.Um dia, chorou quando fui eu o agredido. Eu havia apenas sentado para tomar um pouco de café e me desliguei no tempo. Sempre fui de viajar nas ideias. E, então, adormeci na cadeira da cozinha. Ele gritou minha ausência de inteligência e de modos e minha arrogância de me imaginar gente.
Pela primeira vez, vi poesia nos ditos de minha mãe. Poesia dura. Sua voz sempre escondida ganhou força e avisou que a escravidão viveu em outro tempo. Disse sobre respeito e sobre amor. E pediu as contas. Ele deu de ombros e se foi sem muito incômodo.
No ônibus, ela beijou o que tinha de mim. E olhou para a janela imaginando alguma esperança.E, então, nos ajeitamos com outro emprego. E foi nesse tempo que, humilhado também na escola, desisti.Demorei a dizer a ela. Quando disse, ela chorou. Queria que eu voltasse, eu expliquei não ter inteligência. Ela chorou mais. Culpou a si mesma por não ter me ensinado a ver dentro. A casa, naquela noite, ficou vazia.
O tempo é consertador até de teimosias. Demorou para que eu soubesse que podia saber.E estou, agora, estudando. E gostando.
Meus filhos já são formados. Minha mulher me devolveu a autoestima que muitos roubaram. E abriu sorriso, quando eu disse da escola.Ela tem uma pequena confecção de bordados e escolhe palavras bonitas para enfeitar os aventais que vende.Nos conhecemos em uma calçada; eu perdido, ela pedindo informações. Pouco tempo depois, já éramos um.Minha mãe sempre gostou da nora, bordadeira de bondade no cuidado com as pessoas.
"Terra à vista" foi a frase que algum dos descobridores teria dito. Descobridores de uma terra há muito descoberta. Do exemplo histórico, fiquei pensando na vida.
Terra à vista e o barco parado. Terra à vista e a vista presa a palavras que, erradas, grudam nos navegadores.
Terra à vista e o barco parado. Terra à vista e a vista presa a palavras que, erradas, grudam nos navegadores.
Vou me formar logo. O barco voltou a cumprir seu destino. Sou destinado a banhar de esperança os cascos da minha embarcação. Se um dia desisti, no outro reaprendi. A luz acordou esclarecendo o dia. "É o dia de abandonar as palavras mal proferidas". "É o dia de deixar no passado o passado que não mais me cabe e que nem nunca coube".
Foi nesse dia que cuidei de cuidar de quem sempre cuidou de mim. E que abri os outros dias que vieram. Duros, cheios de imprecisões, mas meus.Se sou pequeno na estatura, se fraturei a alma muitas vezes, nada disso foi impedimento para me aproximar da terra. O impedimento era eu mesmo, quando me via pequeno, quando autorizava a desautorizarem meu jeito de existir.A terra que avisto é a que eu planto amor. Não acumulei as agressões, apenas demiti os agressores da minha vida para poder, de fato, viver.
Vou ser o orador da minha turma. Minha mãe se chama Maria; minha mulher, também. Na minha alma, agora grande, avisto as Marias de minha vida e agradeço.
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