Publicado 11/12/2022 03:00
Sou um homem do interior. E do meu interior jorra gratidão pelo tempo e pelas aprendizagens.
Completei, na semana que se despediu, noventa anos. A longevidade é uma bênção que oferece possibilidades de mais escritas, de mais canções, de mais afetos. Quisera eu ser poeta para esclarecer, com beleza, o que foi brotando de mim.
Observo os irmãos meus, tão míseros na procura do poder. O poder mora dentro. Mora nas lutas temporárias que travamos para impedir as sombras de nos impedirem a luz. Temporárias, porque não se esgotam. É nos percursos que a água vai desenhando o curso do seu existir. As sombras existem, em todos nós. É preciso saber, é preciso enfrentar o que nos envergonha do que já se foi. O passado é ensinador. Os que aprendem aprendem, também, a esquecer. Benditos sejam os lapsos da memória, os dias descartados por não dizerem a felicidade.
Tive algozes de que não me lembro. Vivi dores que se foram com as águas que limpam a vida de vidas que se cruzam com as nossas e que, por algum descuido, não oferecem amor. Aos noventa anos, poderia acumular mágoas e colecionar dissabores. O sabor que alimenta é outro.
Com o tempo, fui criando familiaridade com meu corpo e fui aceitando cada parte de mim. Com o tempo, fui compreendendo que só sou quando sou com os outros, amizade. Com o tempo, fui sentindo o Sagrado nas experiências mais simples dos meus dias e, no Sagrado, encontrando a luz.
Já disse sobre as sombras. Não sei quem as inventou. Talvez a nossa tal liberdade. Prisões foram me amargurando por anos e anos até o dia em que encontrei, no meio da multidão, a mim mesmo.
Observo os comentários dos viventes como eu, nesse mundo tão rico de cenários. Todos fogem de algo. Todos buscam algo. Todos gritam o mesmo desnecessário grito. Insanidades.
Dizia do meu corpo. Já houve um tempo em que eu não gostava. Vontade de ser um outro, mais alto, talvez. Com o céu como cor dos meus olhos, com cabelos um pouco mais avolumados. Com mais destreza nos movimentos.
Dizia dos convívios. Venci as ansiedades aprendendo a ouvir e, assim, cultivando afetos. Quanta sabedoria há no saber viver o momento, no momento que jamais se repete. Um café fumegando sabor e prosa, um ouvir com paciência o dia do outro, um encantamento pelos desprendimentos.
Dizia do Sagrado, eis a parte da eternidade que mora em mim e em todo mundo, e que faz ponte com a natureza, e que faz ponte com o que se sente de mais profundo. É o Sagrado que oferece a paz que hoje ofereço aos irmãos meus. Nada além do Sagrado merece a luta. Os falsos poderes, as falsas riquezas, a falsa glória. A glória verdadeira está nas elegantes vestimentas de uma rosa que atraem beija-flores cantadores de esperança. É o que vejo no jardim do interior onde moro. É o que conto, contando histórias, aos meus filhos, netos e à minha bisneta que, há pouco, desabrochou nesse mundo.
O que mais espero eu dessa vida? Viver! Viver como vivem os desocupados de exigências, os que aprenderam a não cobrar, a não esperar a não ser a espera linda dos dias que sucedem, intercalando sol e chuva, frio e calor, plantar e colher. Se bendigo os lapsos de memória por deixar longe o que me doeu, agradeço cada lembrança do aprendizado do existir que me faz compreender a liberdade de nunca deixar de caminhar amando.
Alguns conhecidos meus dizem que sou ingênuo por acreditar na bondade. Que seja! Ouço suas vozes e prossigo. Prossigo limpando de mim os seus punhos cerrados de algum ódio. É de mãos abertas que celebro meus noventa anos. Sempre haverá alguém precisando levantar. Ou um caminhar acompanhado. Ou um outro orante, peregrino do amor, fazendo ciranda na dança bonita da vida.
Sou um homem com interior.
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