Julio Ludemir é curador e um dos idealizadores da Festa Literária das Periferias (FLUP)divulgação
Publicado 13/12/2022 05:00
Não há como não lembrar que é por uma avenida chamada Brasil que se chega à Maré de Marielle Franco. É o Brasil, e tão-somente o Brasil, que nos aproxima - ou nos afasta - de uma das mais emblemáticas comunidades populares do Rio de Janeiro, onde nada menos que 140 mil pessoas moram e se amam e recriam a relação com o centro.
Poderíamos inverter esse sentido, dizendo que é por uma avenida chamada Brasil que se sai da Maré. Mas remamos para dentro, nos aprofundando no que aproxima o Brasil deste Complexo de 17 favelas reunidas em uma só.
Não há como negar que, muito mais do que definir o que é centro e o que é periferia, é essa cisão que permite que o Estado entre ali com caveirões, fuzis e pés na porta, num desrespeito genocida que um dia a História há de condenar. Ali, se define inclusive se uma criança com o uniforme escolar tem o direito à vida.
É seguro? Posso sair? Dá para ir? Naturalizam a dúvida. Se insistirmos com essa metáfora territorial podemos chegar à imagem de que há uma Maré na fronteira do Brasil – e que essa Maré, como todas as Marés, tem como principal característica ser regida por ciclos. Espera-se de tudo desta Maré, menos que ela seja hoje o que já foi um dia, ou que se repita, amanhã, o que vimos agora - e quase diariamente.
Seu indo-e-vindo-infinito nos leva a questionar inclusive se ela é a mesma quando a olhamos em dois momentos distintos, como já sugeria Heráclito antes mesmo de começarmos a Era Cristã.

A Maré de hoje não é a mesma de 20 anos atrás, quando num outro momento histórico o Brasil elegeu um metalúrgico para a Presidência da República. O próprio Lula, ao vencer uma eleição que teve como mote "mais livros e menos armas", já não é o mesmo.
Também mudou a ideia que tínhamos de periferias e ainda mais sua relação com o centro, como bem o sabem e bem o tentam traduzir os artistas da performance poética que ali residem e estão prontos para ouvir as vozes de outras periferias.
É nessa Maré que reunimos poetas periféricos nacionais e internacionais, indígenas, cubanos, guatemaltecos, acreanos, baianos, mineiros, paulistas, com suas narrativas não bináries, decoloniais e acima de tudo solares. Celebramos a fala radical e as narrativas que dialogam para além dos livros.
A palavra falada se tornou a plataforma por excelência das periferias globais e exaltaremos essas vozes e corpos dissidentes que precisam de uma escuta igualmente sensível e radical. Uma produção poética, que você encontra tanto no Bronx quanto na Baixada Fluminense e Havana, que se alimenta de sua plateia como num jogo de espelhos, numa relação dialética e dinâmica em que ambas as partes sempre saem renovadas.

Uma Festa Literária. Uma Maré de Periferias. A Festa Literária das Periferias. Que ela invada o Brasil. Que o Brasil invada a Maré. E nesses fluxos e refluxos possamos, enfim, apagar as fictícias linhas que nos separam de nós mesmos.
Julio Ludemir é curador e um dos idealizadores da Festa Literária das Periferias (FLUP)
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