Publicado 01/01/2023 00:00 | Atualizado 01/01/2023 02:13
Sonhei, ontem, com Lygia e com suas mãos dançando palavras, como cirandas, cirandas de pedra, cirandas de carne.
Lygia gostava de espreitar as espumas, mas jamais se lançava nelas. Sabia que as superficialidades atrapalhavam o chamado, a vocação.
Sua vocação foi a escrita. Na escrita, encontrou o seu lugar no mundo e, no mundo das palavras, construiu outros para mover, para comover, para dizer o que precisava ser dito. "Vocação vem do latim vocare", dizia ela. E prosseguia com os seus entusiasmos.
No sonho, ela apenas sorria e explicava, ao lado da minha mãe, que as palavras penetram muito, mas, mesmo elas, não são capazes de penetrar o mistério.
Acordei e abri o dia pensando. No fim do ano, os pensamentos desistem do descanso. É um pensar no que passou e que poderia ter sido outro. É um pensar na essência da gratidão. É um pensar no que virá.É um pensar até se fomos ou não desertores da nossa vocação. Quando acontece, a infelicidade nos avisa.
Desde meus anos de adolescência, tenho o costume de escrever propósitos no ano novo.O sonho de Lygia fez migrar, em mim mesmo, as tantas viagens que faço. Sou inquieto desde sempre. É o que sou. E o fazer é, naturalmente, um companheiro de dia inteiro.
O que faço? Por que faço? A quem faço? O fazer preenche as horas e preenche a vida. Mas o fazer não pode ser um desfazer. Faço e desfaço como Penélope aguardando Ulisses. Não. Não há a quem aguardar. Há muitos a agradar ou a cuidar ou a compreender o belo do mundo grande em que vivo.
A vocação se realiza nesse mundo grande, externo. E, também, no mundo imenso, interno. Há camadas dentro de mim que me perturbam na mais fundamental das viagens, a de dentro. Com essa viagem, cumpro o meu destino essencial, ser eu mesmo. Ser um conhecedor da carícia profunda e sagrada que vive em mim e que se alimenta do mundo e que alimenta o mundo. Mas o mundo é diferente do meu mundo. Que é único. Irrepetível. Não há como ser senhor de mim mesmo descasado do mundo em que vivo. Mas não é o mundo em que vivo o ditador do meu senhorio.
Um ano novo é um novo capítulo para rever onde houve escravidão e onde houve voo. A escravidão me faz conviver com um mau humor insistente. Sou escravo de pessoas ou de escolhas incorretas. Sou escravo do desânimo do não fazer ou da euforia desajeitada de fazer o desnecessário. Já o voo é a vocação. É o chamado. É o infinito significando que encontrei um lugar para escrever a escrita autêntica, brotada das dores e das sensações de amor. Do amor sublime ao amor erótico. Do amor amigo ao amor por uma causa mudadora de vidas.
É um desperdício viver sem encontrar a vocação. Vale vasculhar. Vale gastar tempo com o tempo do pensar. Vale escrever para entender melhor. Para ler com vagar o que fizemos com o mundo e o que mundo nos devolveu. Somos umbilicalmente ligados e misteriosamente separados. O ano novo é apenas um símbolo entre tantos outros que nos emprestam significado.
O significado que sugiro para esse que vem nascendo é a vocação. A vocação e o ano novo. Que ninguém se distraia em tantos barulhos que não nos pertencem. Que ninguém autorize o outro a dizer a sua vida. Vida é presente individual. Que se brinca no coletivo, na roda dos afetos, mas que é escrita cada uma a seu jeito.
Quero prosseguir sonhando com habitantes de minha memória. E agradecendo os tropeços e as relvas poéticas que me trouxeram até aqui. Daqui em diante, prosseguirei com os alicerces do passado e as surpresas do futuro. Uma rosa, uma onda do mar, uma nuvem, a lua, um passarinho cantador já sabem o que serão no ano novo. Nós, não. O poder da escolha foi dado aos humanos.
Humanizemo-nos!
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