Publicado 03/01/2023 06:00
A irregularidade e informalidade do processo de urbanização do país baseia-se em relações sociais patrimonialistas e clientelistas históricas, em que o acesso à terra foi restrito a privilegiados. A urbanização, vista como um símbolo de modernização das atividades econômicas e das relações sociais, também representou um processo de profundas desigualdades. Foi marcada pelo crescimento descontrolado das populações por meio do êxodo rural, pela precarização de condições de vida, pela ineficácia do acesso a serviços básicos como saneamento, Saúde, Educação, transporte, e pelo alto custo da terra urbana.
Houve incapacidade e omissão política na oferta de moradia para a nova população urbana. O processo de urbanização caracterizou-se pelo binômio interdependente centro-periferia, onde o centro moderno e cosmopolita contrasta com espaços periféricos marginalizados, marcados pelos estigmas do “atraso” e da “degeneração”, fundamentados em preconceitos higienistas históricos. Esses preconceitos remontam à escravidão e ao processo de substituição dessa mão de obra através da imigração, com o intuito de “civilizar” e “clarear” a sociedade brasileira. A estrutura de privilégios e de acumulação de capital dificultou sistematicamente o acesso à moradia digna, mesmo por trabalhadores formais, impulsionando a autoconstrução informal e irregular.
Desde a metade do século XX, urbanização de favelas tornou-se um tema central na política habitacional brasileira. Esse debate ocorre através de uma dicotomia. Existe a representação da favela como um “problema”, uma “mancha” que deveria ser removida do tecido urbano e da paisagem das cidades. Essa visão apoiou os processos de remoções e reassentamentos em larga escala. Em oposição, existe a perspectiva da urbanização, que reconhece a precariedade habitacional e as particularidades das favelas para integrá-las às cidades. Todavia, aumentar a distância do problema não o resolveu, porque não foram criadas melhores condições de vida para os cidadãos vulneráveis.
O debate está permeado por questões simbólicas e preconceitos. Atualmente, as favelas passam por uma ressignificação através de políticas públicas afirmativas e do trabalho sociocultural de seus ícones. Essa mudança altera sua classificação de problema para potência, o que repercute no maior reconhecimento dos direitos dos seus moradores.
Outra evolução diz respeito à capacidade técnica, urbanística, arquitetônica e social das formas institucionais e administrativas sobre como lidar com a questão. A Prefeitura do Rio de Janeiro merece destaque pelo programa Favela-Bairro, que representou um marco internacional no tema. No âmbito estadual, os recentes programas Casa da Gente e o projeto Na Régua representam uma nova proposta de estruturação de políticas públicas pautadas em evidências, cidadania, dignidade, saúde coletiva e direito à cidade.
Novos caminhos devem ser orientados pela grande complexidade urbanística e social desses territórios e precisam ter como objetivo a integração à cidade. Um espaço desigual é produto de um contexto político e histórico. Se uma cidade desigual foi construída assim, pode e deve ser reestruturada. Chega de considerar a favela como um circuito inferior da cidade!
Allan Borges é doutorando em Direito da cidade pela UERJ
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