Publicado 20/03/2023 06:00
A sociedade brasileira tem visto o esgarçamento dos relacionamentos nas mais diferentes camadas sociais. Provocada majoritariamente pelas disputas político-ideológicas, amizades têm sido comprometidas, famílias, divididas e cismas, gerados em graus inimagináveis, dada a fragilidade das razões que geralmente os causam.
A estigmatização do pensamento divergente como um mal a ser combatido ajudou a cristalizar esse estado constante de disputa. Não faz tanto tempo, as pessoas conseguiam conviver fraternalmente sem que as suas opiniões e preferências político-religiosas fossem questionadas, ou que o seu caráter fosse posto sub Júdice.
Neste sentido, um dos principais desafios de quem acredita na superação de tal tensionamento social é a proposição de caminhos pacificadores. A construção de um espírito compreensivo para com as diferenças é elemento indispensável ao fortalecimento da democracia. Benvinda a qualquer momento, a civilidade decorrente do respeito ao próximo se faz premente em momentos de dramas sociais. Como os vividos no litoral norte de São Paulo, em que grupos ideológicos distintos, das esferas federais, estaduais e municipais somaram esforços para socorrer os necessitados.
Ainda que possa parecer óbvio, o destaque para com o gesto de cobeligerância das autoridades se faz necessário em face do espírito sectário mencionado. Num tempo em que somos estimulados a fazer aliança apenas com quem se alinha conosco na forma de ver o mundo, a disposição para superar dissabores em prol de causas maiores cumpre função pedagógica na educação social. Como líder religioso, o fato me faz lembrar um episódio curioso narrado na tradição bíblica, com um ensinamento ético importante.
No antigo Israel havia “cidades de refúgio”. Eram lugares para onde ia quem tivesse cometido ato equivalente ao nosso homicídio culposo. A pessoa se dirigia a uma delas, apresentava seu caso aos anciãos e, se inocentada, passava o resto da sua vida ali. Era a forma de quem havia derramado sangue acidentalmente não ser vingado pela família da vítima, num contexto em que o código legal preconizava “vida por vida”.
Nos registros históricos daquele povo, no entanto, havia uma curiosidade: a única opção para a pessoa não passar a vida toda na cidade refúgio era em caso de morte do Sumo Sacerdote. Se isso ocorresse, o asilado poderia voltar a qualquer lugar de Israel e ali viver em paz. Das interpretações sobre essa cláusula, uma me salta aos olhos: a que alegava que a morte do Sumo Sacerdote era um evento de grande comoção social; e que quando isso acontece deixamos de lado nossas animosidades pessoais, incluindo desejos de vingança, em prol da causa comum que se impõe.
Vivemos em outra época, com importantes avanços civilizatórios. Mas o espírito dessa ética ancestral nos serve como elemento regulador das relações, e talvez nos ajude a enfraquecer o tensionamento que, a despeito de disfuncional, muitos têm como norma. Tempos de grande comoção social devem fazer arrefecer animosidades pessoais. Em meio aos dramas sociais, só a disposição à cobeligerância e a solidariedade diante do que se impõe a todos dá a cada um a possibilidade de reconstruir a vida.
Daniel Guanaes é teólogo e psicólogo. PhD em Teologia pelo Departamento de Teologia, Filosofia e História da Universidade de Aberdeen, na Escócia. Pastor na Igreja Presbiteriana do Recreio - RJ.
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