Publicado 08/05/2023 06:00
Vivemos em um mundo que já galgou incontáveis e inestimáveis avanços nos seus modos de organização social. Não de hoje, descobertas, invenções, aprimoramentos e sofisticações nas mais diversas áreas que tangem a nossa existência têm contribuído para otimizar o convívio em sociedade. É natural que seja assim, tendo em vista o fato de animais racionais que somos, podermos fazer uso de nossas faculdades intelectuais, emocionais e volitivas para evoluir.
Embora nossos avanços sejam inegáveis, seria leviano ignorar outras facetas que também testemunham o que somos e onde estamos enquanto sociedade. Desagradável que seja, não reconhecer o que depõe contra nós torna muito mais difícil o avanço. Refiro-me ao fato de que, a despeito de toda construção de noções sofisticadas de civilidade, ainda somos assaltados pelos instintos e comportamentos mais bestiais que um ser humano pode experimentar.
São Paulo assistiu, recentemente, a mais um terrível caso de violência armada em ambiente escolar. Um adolescente, usando uma faca, atacou colegas e professores, e uma professora morreu. Caso com ainda mais vítimas tivemos em Nashville, no estado norte-americano do Tennessee, com a morte de seis pessoas. Ainda que alguns argumentem que episódios dessa natureza deveriam ser tratados como acontecimentos extemporâneos, o aumento do número de casos de atrocidades dessa ordem, ao lado de outros tantas que vemos acontecer, é sinalizador de uma realidade que não podemos negligenciar: nossa noção de civilização tem fragilidades. Quanto mais cientes estivermos em relação à sua existência, mais preparados estaremos para lidar com ele.
Das ingenuidades que podem nos fazer sucumbir, a subestimação da maldade humana está entre as principais. Não é sem motivo que as religiões milenares, por exemplo, oferecem ao imaginário humano a compreensão de pecado, transgressão, iniquidade e ideias correlatas. Longe de ser um conto infantil ou uma forma de manipulação de consciência, tais postulações são um alerta quanto ao fato de que indivíduos carregam em si condições existenciais contraditórias. E que, para o bem ou para o mal, a extensão de tais contradições podem ser surpreendente.
Como sociedade, precisamos aprender com os nossos capítulos mais sombrios a não negligenciar a maldade que nos habita, nem a que nos cerca; a não acreditar que os nossos inúmeros avanços compensam pontuais retrocessos; a reconhecer que a normalização da violência como linguagem e método social nos custará o que não tem preço: a vida, sagrada sempre e em qualquer lugar.
Certa vez, Primo Levi disse que, por simplicidade, chamamos este mundo de civilizado. Sem a pretensão de comparar momentos históricos, devemos reconhecer com o sobrevivente do horror do Holocausto que há episódios da nossa trajetória que precisam ser encarados como o “Calcanhar de Aquiles” da nossa ideia de civilidade. Só assim nos prepararemos adequadamente para evitá-los, sempre que possível, e para enfrentá-los, sempre que necessário.
Daniel Guanaes é PhD em teologia pela Universidade de Aberdeen, Escócia, é pastor na Igreja Presbiteriana do Recreio, no Rio de Janeiro, e psicólogo.
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