Publicado 20/08/2023 00:05
Eu era ainda criança, quando vi a cena. Uma camionete grande dando ré e atingindo um carro de entregas de um pequeno supermercado da pequena cidade.
O homem da camionete abre a porta do carro e sai gritando. O motorista, entregador de compras, tenta dizer que o errado não era ele. Gagueja, sofre, silencia.O homem da camionete chama a polícia e fala que quem vem atrás é quem bate. O motorista tenta dizer da ré. A polícia ouve o que fala mais alto e decide.
Quem era o homem da camionete? Mário. Não esqueço que, quando ele saiu da camionete e foi andando, os seus passos deixaram sujeira na rua. Não sei de onde vinha aquela bota lamacenta. Sei de onde vinha aquela arrogância.
Mário era assim na cidade. Ameaçava, gritava, dizia alto e as pessoas assustavam. Meu pai falava do pai de Mário, um homem bom, um fazendeiro famoso por toda a redondeza, mas por razões diferentes das do filho. O pai era um ajudador de gentes. Começou pobre e enriqueceu com o trabalho e sentia-se feliz ao ajudar outros para que tivessem dias melhores.Sempre ouvi que se colhe o que se planta. Mas o que houve, então, com Mário?
Pensei na mãe, bondosa também.Mário se casou e teve duas filhas. Aqui dou um passo longo na história que começa na minha infância. As filhas cresceram, mudaram de cidade e, depois da morte dos avôs, nunca mais voltaram para ver os pais. A mulher de Mário teve uma doença estranha que silencia. Ela nunca mais falou até a morte. Mário culpava a mulher por não ter filhos homens. Uma antiga empregada da casa dizia que ele engravidou uma outra empregada e, sem que o pai soubesse, exigiu que ela abortasse. Era um menino. As histórias correm. E o velho fazendeiro morreu sem a felicidade que têm aqueles que só fazem o bem, tamanho o desgosto com o filho.
Na história da batida da camionete, embora o motorista, por medo, tenha admitido para a polícia que o erro foi dele, o pai, sabedor do que houve, deu dinheiro para a família do motorista sem que o filho soubesse. E por que o pai, tão bondoso, não exigiu do filho a verdade? Por que sempre limpou suas sujeiras sem ir à fonte que o sujava?
Era mais velho, quando teve o único filho. Talvez se sentisse fraco diante de tanta gritaria. Não sei se justifica. Não sou julgador, gosto apenas de espionar a alma humana. Fico tentando vasculhar os porquês. Em que dia Mário começou a ser assim? Foi expulso da escola mais de uma vez. Brigava com os professores. Os pais se desculpavam, mas o filho não mudava. Do gerente do banco aos atendentes do posto de gasolina, todos tinham medo do seu falar alto, das suas ameaças, dos seus arroubos. Diziam que tinha acertos com o delegado, com o prefeito, com o promotor de justiça. Diziam. Diziam que o dinheiro de Mário, herança do bom pai, comprava tudo. Não comprou botas limpas. Não comprou passos leves. Não comprou o amor das filhas. Não comprou a voz da mulher. Não comprou a felicidade dos pais de ver crescer um fruto bom da árvore que foram.
O motorista, do dia da batida, acabou não tendo prejuízo. Engoliu a humilhação por alguns dias e esqueceu. E vive bem. Gosto dele e da família. Rimos muito de simplicidades. Minha filha foi professora de seus filhos. O mais novo se forma em medicina o ano que vem. E chora de gratidão pelo esforço do pai em educar com tanto zelo.
Como disse, não sou julgador, mas sou juntador de letrinhas que formam histórias e que me ajudam a algum entender. As infelicidades que se causam aos outros não passam desapercebidas dos sentimentos que brotam de nós. Os que gritam ensurdecem, os que agridem machucam, os que sujam sujos ficam.Meu pai dizia que se aprende com o bom e com o mau. Com o bom para aprender e com o mau para aprender a não ser.
Eu era tão criança e aquela cena dos gritos do errado vencendo o correto fizeram morada em mim. O tempo me ensinou que ele nunca venceu. Nem naquele dia nem nos outros. A vitória mais bonita do existir está na bondade.
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