Paulo Rosenbaumdivulgação
Publicado 08/12/2023 00:00
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Em recentes artigos publicados sequencialmente na Folha de S.Paulo, e em outros periódicos, articulistas trouxeram suas opiniões sobre o atual conflito no Oriente Médio. No entanto, ao evocar o pano de fundo da guerra que se trava entre Israel e o exército terrorista do Hamas, um deles trouxe inaceitáveis distorções históricas. Vladimir Safatle, por exemplo, publicou um artigo na seção 'Debates', do jornal Folha de S.Paulo, no dia 23/11, para "narrar" a sua perspectiva dos eventos.

Ele começa sua diatribe indignado com alguns dos expoentes da teoria crítica contemporânea, como Jurgen Habermans, Forst, Deitelhof e Gunther, que publicaram como carta aberta, no dia 13/10, o texto intitulado "Princípios de solidariedade. Uma afirmação". "Grundsätze der Solidarität. Eine Stellungnahme".
No texto publicado no site de pesquisa Normative Orders da Universidade de Goethe de Frankfurt, aqueles autores defenderam o óbvio, o direito de retaliação de Israel, e denunciaram os "sentimentos e convicções antissemitas (ódio contra judeus), por toda forma de pretexto", se referindo a toda tentativa de atribuir de forma infundada à ação militar de resposta de Israel "intenções genocidárias".

Eis um trecho da carta aberta:

"A situação atual, criada pelo ataque inigualável do Hamas e pela resposta de Israel ao mesmo, levou a uma série de declarações e manifestações morais e políticas. Acreditamos que, apesar de todas as opiniões contraditórias expressas, existem alguns princípios que não devem ser contestados. Eles são subjacentes à solidariedade corretamente estendida aos judeus em Israel e na Alemanha. O massacre do Hamas, com a sua intenção declarada de destruir a vida judaica em geral, levou Israel a retaliar. A forma como este contra-ataque, em princípio justificado, é realizado é discutida de modo controverso; os princípios da proporcionalidade, de evitar vítimas civis e de travar uma guerra com a perspectiva de uma paz futura, devem ser princípios orientadores. Em particular, as ações de Israel não justificam de forma alguma reações antissemitas, especialmente na Alemanha. É insuportável que os judeus na Alemanha sejam mais uma vez expostos a ameaças contra a vida e a integridade física e tenham de temer a violência física nas ruas."

Genocídio é uma palavra cunhada pelo escritor Raphael Lemkin, nascido na Polônia e sobrevivente que escapou do holocausto. Lemkin ficou perturbado quando ouviu numa transmissão radiofônica do então primeiro-ministro inglês Winston Churchill: "Estamos na presença de um crime que não tem nome". Lemkin, exilado nos EUA em 1943, perdera toda a família assassinada pelos nazistas e imaginou que o "crime sem nome" exigia uma definição menos vaga. Ela foi criada a partir de tudo que se viu durante a tentativa de exterminar etnias e grupamentos humanos, como fora o caso do extermínio de pelo menos 1.500.000 de armênios pelo exército turco-otomano, conhecido como o grande crime "Medz Yeghern". Embora outros povos lamentavelmente também tenham experimentado tentativas de extermínio, no caso dos judeus houve uma ação contínua, sistemática e transnacional inédita, que durou cerca de seis anos. Comboios com judeus em vagões de trens de toda a Europa seguiam para os campos de extermínio, onde eram escravizados e depois eliminados com o Zyclon-B, gás especialmente desenvolvido para assassinatos em massa. Lemkin então reuniu a palavra genós (do grego tribo ou raça) e Cide (grego – assassinando ou matando), e obteve a palavra genocídio.

Mas a origem pode também ser etimologicamente esclarecida através de uma análise ainda mais atenta. Para isso recorremos ao verbete, que na história das línguas é relativamente novo, pois "genocídio" só começou a ser mais frequentemente usado algum tempo depois, em 1948. A palavra, por exemplo, não figurava nas edições mais antigas do Oxford Etimological Dictionary – mas já estava presente no American Heritage – e vejam só como ela foi ficando mais esclarecedora:

"Planejamento sistemático de aniquilamento de um grupo político, racial ou cultural."

Para desmantelar a tese de que o Israel propõe alguma forma de genocídio – e refutá-la –, será preciso recorrer aos números: a população palestina de Gaza teve significativa taxa de crescimento demográfico, crescendo num índice de crescimento de 2,25 (estimativa de 2018) e de nascimento de 30,5 nascimentos por 1.000 habitantes. Já a população de árabes israelenses, que contava com 151.000 depois de 1948, hoje conta com 1.995.000, um crescimento de mais ou menos 1.231%, com uma taxa de fertilidade de 2,98 nascituros por cada mulher.

Ora, que genocídio (sic) é esse que produz um resultado matemático reverso? Vale dizer, aumento demográfico exponencial da população supostamente submetida a um extermínio sistemático e programado. Para além do debate intelectual, seria importante que autores que discutem o tema contivessem seus ímpetos ideológicos e voltassem à análise. Seria também importante retificar os cálculos e publicar um pedido de desculpas aos leitores.

Examinemos o argumento central de Safatle:

"Genocídio não é algo ligado a algum número absoluto de mortes, mas sim a uma forma específica de política de apagamento dos corpos, de desumanização da dor de populações e de silenciamento do luto público que retiram populações de sua humanidade e expressam processos historicamente reiterados de sujeição."

Ora, é quase autoevidente que a descrição usada – apagamento dos corpos e silenciamento do luto público que retiram populações de sua humanidade – adequar-se-ia muito mais aos atos que visavam ao genocídio por parte dos terroristas do Hamas do que às Forças de Defesa de Israel. É praticamente o próprio roteiro usado pelos assassinos jihadistas.

Caso insistam no "genocídio" ao qual se refere, que tal explicitar melhor por que ele não está baseado em evidências matemáticas de decréscimo demográfico? Estaria numa outra categoria? Um genocídio pode não se refletir necessariamente em decréscimo populacional em termos numéricos? Estaríamos diante de um genocídio com superávit populacional?

O artigo assinado por Habermans repudia as "expressões de intenção genocidária", já o autor do artigo publicado no periódico paulista, usando peculiar liberdade poética, atribui ao governo de Israel. Teria ficado tão reativo com a acusação de "convicções antissemitas"?

Ou seja, ele se outorga a decisão do que pode ou não ser considerado genocídio. Neste caso deveria assumir que criou uma espécie de nomenclatura superpersonalizada, que ele mesmo cunhou para si com a função de administrar aulas de doutrina para o seu público. Teríamos então que chamar a atenção para um evidente desvio de função da pedagogia, pois sua técnica foi recorrer a uma linguagem não consensual.

Vamos então novamente evocar alguns fatos, fenômenos que constrangem aqueles que acham que eles devem desaparecer para ceder seus lugares para discursos grandiloquentes:

Em 1939, havia 18 milhões de judeus no mundo. Hoje, os judeus somam 15 milhões. Em 1948, habitavam a região palestina 951.000 árabes e que durante a Guerra de Independência – depois que Israel foi atacado pelo Egito, Jordânia e Síria e suas respectivas populações – restaram 141.000. E hoje Israel conta, como repetido acima, com 1.995.000 de árabes.

Para que não se tome as nuvens por Juno, e para que os leitores entendam o conceito de uma forma mais adequada, trouxemos outra análise. Ao reagir ao ataque dos inimigos da humanidade, a insinuação é que a resposta armada de Israel estaria agindo para aniquilar indiscriminadamente todos os civis de Gaza. Algumas mídias da TV, como, por exemplo, a BBC, incomodadas com a expressão "terroristas" – mesmo tendo o governo do Reino Unido considerado o grupo de Gaza como entidade terrorista –, ainda concedem o apelido de "grupo militante" ou de "free fighters" aos sequestradores e assadores de bebês. E não são poucos aqueles que justificam os atos de 07/10 como uma resposta "proporcionada" diante da opressão. E aí vemos o desfile de expressões e slogans "regime de apartheid" ou "estado terrorista", quando é sabido que a integração social dos árabes em Israel, mesmo longe de perfeita, é um exemplo de isonomia entre os cidadãos. Em qual regime de apartheid há partidos de oposição, direito a voto, exercício dos mesmos direitos e deveres e no qual juízes árabes integram a Suprema Corte de Justiça?

Ora, na mais generosa acepção, estas concessões/perversões da linguagem ideologicamente instrumentalizadas operam de um modo ignominioso e espalham confusão e ódio. Ao bastardizar a palavra genocídio há, no mínimo, má consciência. Não passaria, por exemplo, no crivo de nenhuma análise minimamente rigorosa. Muitos articulistas, comprometidos por uma ideologia prévia, deixam-se levar pelas distorções quando apresentam seus comentários. Trata-se de uma tese de ofício, que independe da verificação dos fenômenos.

Já está na hora de perder a ilusão de que aqueles convictos - em sua maioria gente que vive à revelia da realidade - sejam persuadíveis. Mas nesta crise mundial ficou evidente que o Hamas, além de usar os civis como escudos humanos sob hospitais, templos e organizações da ONU, conseguiu, pelo menos num primeiro momento, ludibriar a imprensa e assim levar junto a opinião pública. Mas este primeiro logro será passageiro porque é insustentável. Ao confessar abertamente que seu propósito é esse, "culpabilizar e responsabilizar Israel pela tragédia humanitária" e que o objetivo é "repetir o que foi feito no dia 07/10 de novo e mais uma vez", os dilemas sobre a natureza do Hamas maligna devem se dissipar.

No entanto, é preciso reafirmar que temos uma tragédia induzida voluntariamente pelos assassinatos em massa, estupros e sadismo só testemunhados quando o Daesch teve seus odiosos 15 minutos de fama. Não, de fato não é uma causa única, mas é a causa eficiente.

É tão difícil assim perceber as diferenças? Enquanto na resposta do país agredido os civis infelizmente são atingidos de forma involuntária e assistemática ao buscar desmantelar a estrutura do exército terrorista financiado pelos Aiatolás e outros regimes regidos por líderes autocráticos, a estratégia do Hamas é tanto abjeta como transparente: propõe a eliminação de um Estado e de seus cidadãos em sua "carta constitucional". Além disso, quer levar sua luta para além das fronteiras do Oriente Médio ao propor a globalização do jihadismo, e o sacrifício da população palestina a fim de alcançar seus objetivos estratégicos terroristas.

E notem, há quem apoie a estratégia.

A pergunta que fica é: até que ponto assumirão este apoio? Ao tornar o terror pop – que os céus me perdoem pela expressão –, as massas que marcham com bandeiras e insígnias terroristas sabem realmente quais valores estão proclamando?

Há duas possibilidades. Se sabem, precisam arcar com as consequências de suas decisões: apoiar os inimigos da humanidade resultará em governos autocráticos, teocracias, leis religiosas implacáveis impostas à maioria da população, intolerância à diversidade, homofobia institucional com sanções penais e pena capital, criminalização de outras religiões e cultos, retrocesso nas liberdades individuais, abolição da legislação civil e instalação de um código penal do século VII.

Se não sabem, eis o momento de dar marcha à ré e sair da onda enquanto é tempo.

Se os defensores de atos de sub-humanidade persistirem na defesa daqueles crimes cometidos por bandos assassinos em estado de êxtase, será preciso fazer novos contratos sociais, vale dizer, refazer toda legislação e códigos morais que conhecemos.

Se as vítimas não puderem mais responder aos ataques, precisaremos refundar as bases do direito internacional e da legislação jurisprudencial tal qual os conhecemos hoje.

Se a legitima defesa e os atos de prevenção à repetição de barbáries (reiteradamente reafirmados pelos terroristas e filoterroristas) passarem a ser considerados mais dolosos do que o próprio ataque, será preciso reconfigurar tudo o que aprendemos não apenas do ponto de vista da cultura, mas também e, principalmente, sobre onde está fundamentado nosso conceito de civilização.

Ou, se não aprendemos, no que consiste esta falha pedagógica monumental a não ser uma perversão absoluta de noções, como o significado do bem, da autotranscendência, dos eixos ético-morais, e da própria cultura que tem guiado boa parte do mundo Ocidental?

Se o objetivo é recorrer às narrativas – que tomaram o rumo ambíguo de uma dialética fácil, pois não é mais o argumento que vale, mas sim as convicções prévias ao debate –, sabemos que seremos dominados e soterrados pelos mesmos refrões que têm regido e dominado o debate acadêmico doutrinador com suas repetitivas palavras chaves: colonialismo, teoria racial crítica etc.

O mal-estar na cultura prenunciado por Freud nos momentos que antecederam a eclosão da 2ª Guerra Mundial pode estar se repetindo, ainda que sob outra configuração. O mal-estar de nossos dias excede, portanto, a polarização, ultrapassa a mera divisão entre blocos de países com interesses divergentes.

O epicentro da crise central é axiológico: está nos valores.

Pode ser o ponto nodal que exige atenção máxima da humanidade: a escolha entre civilização e não-civilização. E aqui pode-se evocar o princípio de Karl Popper: o paradoxo das sociedades abertas e seus inimigos. E se estas sociedades permitirem a ascensão ao poder de grupos que passem a lutar para suprimi-las? Como prevenir que estas forças se voltem contra os valores democráticos? E se sob uma votação em pleitos e sufrágios, mesmo abertos e legítimos, o futuro autocrata vencedor exercer a tirania e avançar sobre as garantias individuais? E se a liberdade religiosa for questionada? Com quais mecanismos contamos para barrar os abusos? Arrisco que não nos preparamos para o paradoxo, pelo menos não de forma adequada.

Até aqui a realidade mostra que ainda não encontramos medidas eficazes contra os abusos de autocratas, populistas e fanáticos, habitualmente unidos para ir adiante trilhando o caminho de catástrofe em catástrofe.

Impossível sair seco deste mar de problemas e, sem mergulhar no dilema, ninguém sairá ileso.

Ninguém.
 
Paulo Rosenbaum
Escritor e médico brasileiro
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