João Batista Damasceno, desembargador do TJdivulgação
Publicado 10/02/2024 00:00
Uma advogada foi assassinada juntamente com seu cliente na semana passada na cidade Santo Antônio, na região agreste do estado do Rio Grande do Norte. Minutos antes de ser morta, a advogada publicara uma foto de dentro da delegacia, momento no qual libertava seu cliente. Tratava-se de uma jovem advogada de 26 anos e a pessoa que soltara era o primeiro cliente que conseguia tirar da cadeia. Advogada e cliente foram mortos a tiros a cerca de 600 metros da delegacia de onde tinham saído.
O cliente, assassinado junto com a advogada, era investigado pela Polícia Civil. Na foto publicada pela advogada, numa imagem escurecida e mostrando apenas os pés de duas pessoas – provavelmente dela e do cliente –, escreveu: "Delegacia de Polícia Civil", "A sociedade e a sua mania de condenar um indivíduo apenas com base no 'disse me disse'".
O cliente da advogada assassinada era investigado como um dos suspeitos de um crime ocorrido dois dias antes, quando – durante uma vaquejada – duas pessoas numa motocicleta atiraram num vaqueiro e fugiram. Os autores do assassinato do vaqueiro não foram identificados, mas havia suspeita de que pudesse ser o cliente da advogada assassinada.
O homem em favor de quem atuava a advogada fora levado para a delegacia, conduzido coercitivamente sem qualquer amparo legal. Embora não houvesse flagrante ou mandado de prisão expedido por autoridade judicial competente, o investigado fora detido pela Polícia Militar em uma cidade vizinha e conduzido até a delegacia de Santo Antônio, distando cerca de 30 km de onde fora preso. Sem a indevida condução coercitiva não se teriam os dois homicídios.
Inexistindo mandado de prisão e não sendo caso de flagrante, a jovem advogada exigiu que o delegado o soltasse. E este o fez. Casos similares ocorrem pelo Brasil com certa regularidade. Os defensores das liberdades vivem as agruras de suas profissões no Brasil. Cerca de 50 advogados são assassinados por ano no Brasil. Advocacia e jornalismo são atividades de alto risco no Brasil. Tendo sido juiz por 18 anos na Baixada Fluminense tomei ciência do assassinato de muitos advogados. Embora muitas das vezes as investigações não relacionem o crime ao exercício profissional, depreendem-se, não raro, precisas vinculações.
No final dos anos 90, um advogado domiciliado em Nilópolis propusera em todas as comarcas do estado ações populares para que a Justiça compatibilizasse o número de vereadores nas Câmaras Municipais com proporcionalidade às respectivas populações. Os vereadores, em quase todos os municípios fluminenses, haviam estabelecido o número de cadeiras no máximo permitido. Ele pretendia que cada município tivesse número de vereadores, entre o mínimo e máximo permitido na Constituição, com proporcionalidade às respectivas populações. Eu julguei uma ação destas. O advogado foi assassinado.
Em Nova Iguaçu, no início do século, um grupo de jovens foi conduzido coercitivamente, sem flagrante e sem mandado, para uma delegacia. Tal como a advogada assassinada no Rio Grande do Norte, um advogado compareceu à delegacia e exigiu a libertação dos rapazes, o que foi feito. Ao chegar em casa, no bairro de Vilar dos Teles, o advogado foi assassinado.
Os algozes das liberdades não compreendem o trabalho dos profissionais do sistema de Justiça. Um jovem advogado defendeu um homem acusado de homicídio. No tribunal do júri, demonstrou a inocência do seu cliente, que foi absolvido. O irmão da vítima, inconformado com a absolvição de quem ele supunha ser o assassino, executou o advogado.
Na peça Júlio César, de Shakespeare, um dos personagens de um grupo que tramava um golpe exclamou: "A primeira coisa que faremos será matar todos os advogados". Advogados sempre foram obstáculo às tiranias e às violações aos direitos. Napoleão Bonaparte proibiu que os advogados interpretassem o seu Código Civil. Hitler classificava os advogados como pessoas desprezíveis. Durante a ditadura empresarial-militar, muitos advogados foram presos, torturados e alguns desaparecidos, tão somente porque defendiam os perseguidos do regime. Em 1980, quando da transição da ditadura para a democracia, a própria OAB/RJ foi alvo de bomba. Não raro os atentados à vida dos advogados envolvem agentes do Estado, tal como a carta-bomba endereçada ao presidente da OAB/RJ, Eduardo Seabra Fagundes, que matou sua secretária Lydia Monteiro.
No nosso modelo de democracia, fundada no Estado de Direito, com direitos e garantias individuais e fundamentais e no qual se assegura o contraditório e ampla defesa, a atividade do advogado é imprescindível. Dispõe a Constituição que o advogado é indispensável à administração da Justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei. Assim como o assassinato da Juíza Patrícia Acioli foi um atentado à Justiça, o assassinato de quem defende as liberdades se revela idêntico atentado ao devido processo legal. A proteção legal à atividade advocatícia há de ser objeto de todos os que pugnam pelas liberdades públicas. Afinal, sem advogado não há Justiça e sem Justiça não há democracia.
João Batista Damasceno
Doutor em Ciência Política
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