Wagner VicterMárcio Mercante
Publicado 02/03/2024 00:00 | Atualizado 02/03/2024 08:01
Sou filho de um "Lightiano". Meu pai, Francisco, foi motorneiro de bonde da Light e tenho imagens minhas, ainda jovem, junto com ele devidamente e garbosamente uniformizado e usando quepe.

Quando estava pra me graduar como engenheiro, um dos pontos que meu pai sempre insistia, e que também era o seu sonho à epoca, era que um dia eu também trabalhasse na Light, que junto com a Petrobras e a então Vale do Rio Doce eram as referências de empresas no país onde um profissional poderia fazer sua carreira e ser admirado quase como um título de nobreza.

Não foi por acaso que fui influenciado por dois professores da Politécnica da UFRJ que trabalhavam na Light, Afrânio Pinho e Paulo Moraes, e fiz o concurso público para a Light, ainda estatal na década, e ingressei no quadro de engenheiros da empresa em 1984, com pouco mais de 20 anos, quando fui trabalhar na principal área de aprendizagem de um profissional de Engenharia: a manutenção.

Trabalhei especialmemte coordenando as equipes nas subestações de alta tensão (138 KV) que suportavam a Cidade do Rio de Janeiro e municípios da área de concessão da empresa.

A Light é uma empresa diretamente ligada à implantação da infraestrutura do Brasil, não só pela sua história de muito mais de 100 anos, quando ainda era uma multinacional canadense e atuava em diversas áreas, como transporte e outras atividades de energia, mas principalmente por ter atuado como protagonista na implantação de toda infraestrutura de nossa Região Metropolitana. Mais tarde, na década de 70, próximo ao fim de concessão, foi estatizada pelo Governo Federal, diante da sua importância.

Dentre os importantes recursos da Light, não há como não citar seu complexo de geração hidrelétrica de Lajes, que está diretamente ligado à formação da calha do Rio Guandu, de onde se capta toda água que é tratada pela CEDAE e que, após tratamento, abastece quase 10 milhões de pessoas na Região Metropolitana.

Lembro-me da emoção quando fui assinar meu primeiro contrato de trabalho com a Light, entrando na Avenida Marechal Floriano 168, no Centro histórico do Rio. O orgulho de realizar o sonho de meu pai me rasgava a memória quando vestia meu macacão quase como uma armadura de guerra, e colocava minha bota e capacete para poder sair com as equipes de manutenção para as ruas. Essas lembranças estão diretamente ligadas à minha formação profissional e ao respeito que cultivei pela empresa que pude acompanhar mais de perto durante os oito anos que fui titular da Secretaria de Estado de Energia do RJ.

Digo sem sombra de dúvida: a Light, como poucas empresas no Brasil, é uma companhia que tem alma e, mesmo com todos os graves problemas que têm acontecido nos últimos anos, ainda merece respeito! Não é por outra razão que, mesmo com as mudanças nos diversos controles, o seu nome sempre foi preservado, ao contrário de outras empresas e concessões públicas que tiveram a modificação de sua marca na apropriação por grupos externos. O nome da Light se consolidou de tal maneira que está presente até em expressões clássicas da nossa economia do lar como: "apague a luz, pois não sou sócio da Light!". Ou seja, a Light virou sinônimo de energia elétrica e também de uma empresa nitidamente carioca.

O fato é que a última concessão da Light ao setor privado foi há 28 anos e está em véspera de vencimento, com cerca de três anos de operação somente, e a discussão está entre "prorrogação" ou uma eventual nova licitação.

Nesses cenários indefinidos, porém, existe algo muito mais importante que está para acontecer já no próximo 21 de março, mas que não tem despertado grande atenção: a assembleia de credores para discutir o equacionamento do passivo da empresa, que está atualmente em um processo de recuperação judicial.

A não realização de um equacionamento desse passivo em bases razoáveis e que estejam amparadas não só na legalidade, mas na possibilidade do retorno à normalidade financeira da concessão impactará fortemente a vida de todo cidadão do Rio de Janeiro.

Independentemente do caminho que será adotado para o futuro, esse equacionamento deveria gerar grande preocupação para todos, pois está diretamente ligado não só à qualidade de vida, mas à capacidade da continuidade do desenvolvimento do Rio de Janeiro e à própria normalidade de vida do cidadão fluminense.

Não se trata meramente de uma discussão que deva ficar no campo entre credores, devedores, controladores da concessão e as eventuais instituições garantidoras desses débitos. Esse é um debate em que se deve se ter um cuidado maior pelo impacto não só na capital do RJ, mas também em mais de duas dezenas de cidades do estado.

Obviamente, esse é um trâmite imediato que merece ser acompanhado de perto pelos diversos níveis de poderes públicos e agências reguladoras.

Não é demais também insistir que a não evolução do tema e sua continuidade como um imbróglio duradouro vai impactar na vida e em eventuais intervenções de modernização e de manutenção corretiva que estão acontecendo até para cobrir problemas do passado recente, como no caso do próprio sistema de linhas de alta tensão para a normalização do abastecimento do bairro onde moro, a Ilha do Governador, que recentemente colapsou por falhas no planejamento da concessão.

Não é trivial relevar questões que afetam o nosso "fígado" diretamente e que causaram noites em claro (escuro), mas nesse momento, nossa razão e pragmatismo precisam ultrapassar a emoção. Assim, devemos entender os benefícios da continuidade dessa concessão, mesmo que somente nos prazos estabelecidos pelo atual contrato, o que só será possível com o equacionamento desses passivos.

É muito importante que o processo de recuperação judicial possibilite que a empresa tenha capacidade de investir, em curtíssimo prazo, na renovação dos ativos, na modernização, expansão e, principalmente, que as empresas e pessoas possam realizar seus planos e se desenvolver sabendo que contarão com energia de qualidade e confiável!

Uma recuperação judicial deve sim buscar atender às demandas legítimas dos credores, mas também deve atender à finalidade da concessionária de um serviço público, que é garantir energia de qualidade para a população. Trata-se do princípio básico desse "negócio" de atendimento de serviços essenciais que não pode ser negligenciado em nenhum equacionamento como um mero acordo entre partes privadas.

Wagner Victer
Engenheiro, administrador, ex-secretário de Estado de Energia, Indústria Naval e do Petróleo e ex-conselheiro do CNPE.
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