Nésio FernandesDivulgação
Publicado 03/06/2024 16:42
Rio - A história da medicina no Brasil é devedora de honra às universidades públicas. Instituições federais, estaduais e até municipais carregaram a formação médica durante o século XX e a elas devemos o reconhecimento de excelência da medicina brasileira. No entanto, essa hegemonia na formação de graduação começou a mudar a partir dos anos 90, acelerada e consolidada nos últimos sete anos pelo avanço expressivo das universidades pagas, ofertadas por instituições privadas de finalidade lucrativa, por instituições comunitárias/filantrópicas e por fundações estatais de direito privado.
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Essa transição gerou um senso comum na crítica aos cursos pagos de medicina, caracterizando esse crescimento como anárquico, desorganizado e disfuncional. No cerne dessas críticas está o desempenho dos médicos egressos dos novos cursos de medicina e sua potencial ameaça à saúde coletiva.
Em 2013, com a criação do programa Mais Médicos, projetava-se chegar a 18.000 vagas anuais de cursos de medicina e uma equivalência com a oferta de vagas em programas de residência médica. Havia ali uma coerência: interiorizar cursos e equiparar a oferta de especialização em serviço com a graduação. Era proposto fortalecer a residência médica em áreas estratégicas e a ampliação regulada pelo Estado das vagas dos cursos de medicina a serem interiorizados.
Dois fenômenos levaram ao crescimento anárquico, desorganizado e disfuncional do modelo proposto: a moratória na abertura de novos cursos de medicina durante o governo de Michel Temer e a descontinuidade do dispositivo de equiparação das vagas de graduação com as de residência, aprovada na criação do Programa Médicos pelo Brasil. Ambos os fenômenos foram recebidos com um estrondoso silêncio.
O principal fator da expansão foi a ausência de regulação pelo Estado. A moratória levou à judicialização da abertura de novos cursos, processo que ainda transcorre no STF. Não foi o Mais Médicos que nos levará à formação de mais de 40.000 médicos por ano no Brasil, mas sim sua descontinuidade.
Outro fenômeno importante a destacar na crítica à crítica é a descontinuidade das iniciativas de expansão e qualificação dos programas de residência médica. Visto com bons olhos pela reserva de mercado, o bloqueio à abertura de novos programas e a falta de estímulos aos existentes enterrou a perspectiva de termos hoje uma vaga de residência para cada vaga de graduação. Essa meta tornou-se impossível.
Operando a catarata da crítica à medicina no Brasil, poderíamos visualizar o setor privado da educação médica como estratégico para a economia do país? Tanto os cursos públicos quanto os privados são úteis ao desenvolvimento nacional. Cada vaga em cursos privados de medicina é cotada entre 2 e 2,5 milhões de reais no mercado, representando uma atividade potencial de 60 bilhões de reais. Qual economia nacional prescindiria de um setor econômico dessa proporção?
Já imaginaram os governos dos EUA ou de países centrais prescindindo de suas universidades privadas para desenvolver seus projetos nacionais? Nem o Partido Comunista da China prescinde do setor privado da educação. Lá, o apoio governamental inclui políticas de incentivo, facilitação de parcerias internacionais e incentivos fiscais para pesquisa e desenvolvimento. Além disso, o governo chinês estimula essas universidades a colaborar com o setor industrial, promovendo a transferência de tecnologia e a inovação. É questão de clareza do projeto nacional.
O centro do problema está nas diversas lacunas do projeto nacional brasileiro. "Não sabendo o que busco, não entendo o que vejo." Sem clareza do projeto nacional de desenvolvimento, não conseguimos identificar o papel dos processos reais da vida, como a relação de unidade entre a formação médica pública e privada.
É preciso reconhecer fenômenos objetivos e administrá-los. O setor da educação privada no Brasil é constituído por uma força econômica e política real. Reconhecer a necessidade de uma política de Estado que organize os campos de práticas para a formação médica, independentemente do curso ser privado ou público, é urgente. Estados e municípios precisam ser apoiados e estimulados a adotar medidas para a organização dos serviços visando à qualificação da formação médica, assim como à expansão dos programas de residência.
Os melhores serviços de saúde no mundo desenvolvem atividades de ensino e pesquisa. A ampla presença dos cursos de medicina nos serviços públicos deveria ser transformada em um componente obrigatório de qualificação do atendimento do SUS.
As universidades públicas ou privadas com cursos autorizados em qualquer lugar do Brasil não deveriam ser as únicas a resolver as complexas relações com gestores e serviços locais. É necessário ter uma política nacional para a organização dos serviços e sua transformação em serviço-escola.
Neste momento, a expansão de programas de residência e o financiamento público dos mesmos deveriam ser autorizados até para instituições privadas, desde que a oferta dos programas fosse pública e gratuita. Por que prescindir de uma infraestrutura instalada e de apoio à qualificação docente no país? O mesmo se aplica aos recursos públicos para a publicação de artigos e no desenvolvimento de projetos de pesquisa em universidades privadas.
Incapaz de ofertar as vagas de residência necessárias, o caminho para a titulação de especialistas no Brasil está migrando para as denominadas "provas de título" oferecidas pelas sociedades de especialidades. É preciso qualificar essa rota de especialização.
Cursos de pós-graduação oferecidos por instituições públicas e privadas poderiam ser utilizados nos serviços de saúde como campo de prática supervisionado com o dobro do tempo de duração dos programas de residência médica, inclusive com bolsa de formação em serviço.
É uma questão de inteligência e de pensamento estratégico. Se não o fizermos, faremos o quê? Publicar artigos e dar entrevistas tratando de mais do mesmo enquanto as forças reais da vida e da economia seguem incólumes? É preciso criticar a crítica e propor caminhos para a formação médica nas condições reais de hoje, instrumentalizando seu tamanho para o desenvolvimento do SUS como um componente de desenvolvimento do país.
Superar a falsa separação entre público e privado, diluindo na dialética da vida real uma síntese: a medicina, pública e privada, faz parte de um componente estratégico para o país.
Para além de iniciativas pontuais, chegou a hora de a corporação médica sentar à mesma mesa que as instituições públicas e privadas e pensar a medicina e a saúde de modo mais amplo dentro do projeto nacional. Melhor ainda se isso for liderado pelo governo de frente ampla eleito para unir e reconstruir o Brasil.
O Estado deve regular a abertura de cursos de medicina, reduzir ampla disparidade de cursos públicos em relação aos privados e principalmente ter propostas para instrumentalizar o setor dentro de uma visão de país.
Então, se tivermos clareza do papel da saúde no projeto nacional, poderemos olhar um estudante de medicina no Brasil de hoje, independentemente da natureza jurídica de sua instituição de ensino, e reconhecer sua potencial contribuição ao projeto do país e não um risco à saúde pública ou à precarização da medicina no país.
Nésio Fernandes é médico sanitarista, especialista em Medicina Preventiva e Social e em Administração em Saúde, mestrando em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Espírito Santo
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