Publicado 23/06/2024 00:46
"Prefere o silêncio ou gosta das conversas?" - foi a pergunta que ela me fez assim que sentei em seu táxi. O nome da motorista é Laura.
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"Podemos conversar, claro."
Ela sorriu também com os olhos. Olhos claros os de Laura. Eu os admirei pelo espelho. A conversa começou sobre o bom do dia, o bom dos dias. "Eu fiz uma cirurgia na coluna, não posso dirigir o dia inteiro. Costumo chegar no ponto às 6 da manhã e trabalho até 2 ou 3 da tarde".
Eu quis saber da cirurgia. Ela disse que teve algum medo: "Afinal, tenho 84 anos".
Eu reparei nas mãos envelhecidas de Laura. Nas veias. Fiquei imaginando os caminhos conduzidos por ela.
"O que há de melhor em ser taxista?"
"Ah, a gente conhece muitas pessoas, muitos endereços, escuta muitas histórias."
E prosseguiu: "Para alguns, eu dou conselhos. Ontem mesmo, eu ajudei uma mulher a se reconciliar com a bondade".
Achei bonita a expressão. Quis saber. Ela contou. Contou do seu marido, morto há alguns anos. "Ele gostava mais de falar com Deus do que de falar com as pessoas. Já eu, vejo Deus nas pessoas, por isso converso".
Eu repeti a frase para mim mesmo: "Eu vejo Deus nas pessoas".
O sol estava bonito. O conduzir do carro, também. Uma direção segura por sobre o asfalto. Perguntei dos cotidianos. Perguntei dos dias de chuva, e ela me respondeu com os agasalhos.
Falou de política e de suas decepções. Comentou sobre as ausências de amor. "Ninguém pode ser um bom prefeito, um bom presidente, sem amor". Concordei dizendo da profundidade dos seus dizeres. O amor é o movimento mais responsável em direção ao outro, para compreender, para cuidar, para permitir o seu florescimento.
Quis saber da minha profissão. Achou bonita a minha escolha, professor. Disse que, se não fosse taxista, gostaria de ter sido professora. E riu, brincando, "Quem sabe um dia?".
Ela voltou a falar do marido e da falta que ele faz. Perguntou das minhas perdas. Eu disse. E, dizendo, falei de minha mãe. O marido morreu no mesmo ano que minha mãe. Falamos os dois das despedidas. E falamos das lembranças, também.
Laura disse dos erros de querer muito. "Se há alguma coisa que eu aprendi nessa vida é que nada vale mais do que os sentimentos".
Eu concordei. Como imaginar uma vida sem os laços que nos enfeitam de alegria os dias?
"Ah, eu sou alegre, eu não dou espaços para amarguras. Eu olho para o passado, mas tenho apetite de amanhãs."
Um carro fechou um outro, que buzinou com impaciência. Laura balançou a cabeça em sinal de desaprovação. Ao passar em um pedaço da cidade e olhar para as pessoas em situação de rua, ela disse sem precisar de outras explicações, "Corta o meu coração".
Há pessoas que deixam de enxergar os sofrimentos dos outros. Laura, não. Ainda houve tempo para falarmos da filha da vizinha que se cortava nos braços. "Fico muito preocupada com as crianças de hoje em dia, parece que não brincam mais, não sei, é tanto peso sobre elas". Eu concordei e disse que ela seria uma boa professora.
Antes de chegarmos ao destino, ela pediu que eu indicasse alguns livros. "Por causa da coluna, eu tenho que chegar cedo em casa. Então, tenho mais tempo para leitura". Quando o carro estacionou para que eu pudesse descer, ela pediu uma foto. Tiramos. Entregou seu cartão e se ofereceu para outros caminhos.
Decidi que vou chamar Laura muitas vezes. Gosto de ser conduzido por quem tem apetite de amanhãs.
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