Publicado 04/08/2024 00:02
Os tempos do pensamento são outros, são diferentes do tempo dos acontecimentos. O acontecimento fica no tempo. O pensamento traz o acontecimento a um outro tempo.
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Os tempos do pensamento resolvem dores, decepções, quedas e suas feridas. Feridas são cicatrizadas nos tempos do pensamento. Os tempos do pensamento dissolvem a palavra culpa. Dissolvem, retirando a palavra culpa da prateleira das memórias das palavras. Em seu lugar, a palavra responsabilidade.
O tempo nos ensina a não buscarmos culpados pelos tropeçares, mas encontrarmos, nos outros ou em nós mesmos, os responsáveis para o levantar e o prosseguir. Os tempos do pensamento nos enfeitam de alegria a vida, quando compreendemos.
Os tempos do pensamento me levam à casa de Tadeu, um escultor da minha cidade. A esposa de Tadeu, Bernadete, era professora de piano. Minha professora de piano. Eu ia às aulas e, depois, gostava quando Bernadete tinha algum tempo antes do próximo aluno. E sentávamos no quintal, onde Tadeu esculpia.
Eram tão diferentes Bernadete e Tadeu. Ela falante, ele silencioso. Quando ele dizia, ela completava. E ele não se importava. Voltava às mãos, a dança das mãos, esculpindo. Ela era apressada e dizia não ter paciência para tanto detalhe. Ele ria. E, então, ela o defendia explicando que não era preciso atropelar o tempo. O tempo não é feito para atropelamentos. Nem na música.
As mãos de Bernadete dançavam pelo piano. Gostava ela de, ao final da aula, tocar alguma coisa. E eu achava aquelas mãos lindas, como achava lindas as mãos ajeitando o barro que ajeitava a imagem de alguém na escultura de Tadeu.
O tempo da música confere a ela a harmonia que encanta. Tadeu, no seu quintal, gostava de ouvir a mulher dedilhando as notas que embelezavam o seu dia. Mãos preciosas as de Bernadete. Mãos preciosas as de Tadeu.

Em uma tarde de inverno, depois da aula, sentei próximo a Tadeu e fiquei vivendo as suas mãos terminando uma escultura. Ao lado de onde estávamos, uma pequena fogueira. À noite, teria festa. A mãe de Bernadete, também com as mãos, cozinhava na cozinha. Um cheiro bom nos profetizava o bom dos doces que seriam servidos. Quando chegou um outro aluno, eu estava tão absorto acompanhando as mãos que terminavam a obra de arte, que Bernadete perguntou se eu queria ficar um pouco mais. Eu quis.
Tadeu dava os últimos retoques na imagem de São Francisco de Assis. Com que carinho ele esculpia. Com que carinho cozinhava a mãe de Bernadete. Com que carinho ela tocava ao piano. Ainda ouço aquele dedilhar, era Johann Sebastian Bach e o seu "Jesus, Alegria dos Homens". O cheiro brotado das mãos de Helena, a mãe de Bernadete, era o de cocada. Cocada de forno.
Eu disse ao Tadeu de como admirava o seu trabalho, ele agradeceu e falou do bonito do som da sua mulher. Eu concordei. As mãos humanas, quando dançam, produzem belezas nos mais diversos fazeres. As mãos que desconhecem a dança, agridem, espantam e até matam.
Há pensamentos que não pensam o esculpir. Inclusive de nós mesmos. Barros que somos. Barros em modelagem. Barros nascidos para a transformação. O fogo da vida, mesmo nos invernos, nos lapida. A dor é um acender da consciência, é um relembrar de quem somos.
Tadeu viu o meu olhar de admiração à sua escultura e ofereceu fazer uma para mim. Eu recusei por educação. Assim aprendi dos meus pais. Ele insistiu. Bernadete que ouvia tudo, mesmo dando aula, disse que eu aceitasse, que daria muito prazer ao seu marido. Ainda antes de ir embora, Helena nos trouxe um aperitivo do que comeríamos à noite. Como eram boas, no interior, as festas do encontrar.
Cheguei em casa dizendo tudo. Da dança das mãos. E minha mãe beijou um beijo doce espantador de qualquer frio. À noite, fomos todos à casa da professora de piano e do escultor de vidas que marcaram vidas. Minha mãe também gostava da prosa. Quando ela e Bernadete falavam, até as pausas se despediam.
Os tempos dos pensamentos... com o tempo, aprendemos o que pensar. E percebemos que o pensar nos esculpe para sermos obras-primas no mundo que ganhamos de presente.
Todos eles já se foram, mas o São Francisco de Assis, que ganhei de Tadeu, ainda inspira em um canto bonito de onde hoje moro. Inspira a lembrar do santo que conhecemos e de tantos santos anônimos que usam as mãos para esculpir o bonito da vida.
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