Publicado 18/08/2024 00:03

Eu havia chegado à academia um pouco ferido. Nos afetos. Os seres humanos são portadores de diferentes vozes. Algumas nos dizem amor, outras nos dizem dor. Nem toda dor é necessária. Eu estava doído.
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Sou cultivador da alegria e não me filio ao grupo dos que espalham lamúrias por onde andam. Mas estava triste. A dor vinha da decepção do fazer de um amigo. Fazeres falam. Quanto mais amigo, mais dói.
Não sou das crenças de que os amigos têm que suprir o que esperamos deles. Mas algum esperar se faz necessário, que sejam eles bons. Não acredito na existência da amizade na ausência da bondade. Máscaras escondem rostos, rostos escondidos escondem intenções. A falsidade parece uma erva daninha que interrompe a beleza dos jardins da convivência.
As interrogações ocupavam a alma, enquanto eu fazia alguns exercícios para o corpo. Treinar faz bem.
Então, o sorriso chegou. Lúcio, o seu nome. Sem grandes apresentações disse que gostava muito de mim e que eu era bom. Disse com a destreza de quem não ensaia nem esconde o que quer dizer. Enquanto sorria e dizia, acariciava com carinho meu rosto. Seu pai veio logo em seguida. Treina com o filho na academia.
Lúcio tem síndrome de Down, como meu irmão amado Júnior, que já vive em Deus. O pai disse ao filho que não me incomodasse. Eu disse que não havia incômodo algum. O filho, que já havia abraçado com o sorriso, abraçou com os braços. E foi adiante, "Quando eu gosto, eu gosto". E olhando para o pai: "E ele também gosta de mim, papai, eu sinto que ele gosta". Concordei com a cabeça e partiu de mim o novo abraço.

Prosseguimos o treino. Ele com o pai, e eu com o sabor daquele encontro. Sem máscaras. Sem outras intenções a não ser a do amar. O dia clareou em mim. A mente se pôs a treinar, também. Espantando a preguiça da decepção recente e abrindo a caixa de memórias que tanto poder tem e trazendo meu irmão de volta.
O Júnior era um cantador da bondade. Brincava o dia inteiro e sorria as despreocupações. Nem os dias quentes nem as friezas da humanidade roubavam do Júnior a interminável primavera.
Naqueles tempos, a inclusão era ainda mais difícil. Algumas escolas se recusavam a compreender a beleza dos convívios nas diferenças. Uma vez, uma diretora perguntou para minha mãe, de que entendia o Júnior. A resposta que eu deveria ter dado, ainda tão criança, era a de nunca aborrecer ninguém. De não ferir. De não causar dor. Júnior apenas cantava. E dançava no centro da nossa vida.
A lembrança do meu irmão trouxe a alegria de volta. Perto, eu via Lúcio e o pai. Como era lindo ver o cuidado do pai com o filho. A cada pausa de exercício, o abraço. Sorriam juntos.
Minha mãe contava que, quando o meu irmão nasceu, ela sofreu muito. Dizia isso com sinceridade. Sofria por ela e por ele. Sofria imaginando que, um dia, quando ela partisse, seria difícil alguém cuidar dele. Com o tempo, o sofrimento virou convívio bonito, aprendizagem.
Foi ele quem partiu primeiro. Partiu partindo de saudade todos nós. O cantar sem ensaios nem enfeites havia silenciado. Em mim, o filho caçula, naquela procissão de adeus era como se toda a cidade se vestisse de luto. Era o segundo irmão que eu perdia. O primeiro foi em acidente de carro. Minha mãe e meu pai enterravam, assim, o segundo filho. Naquele entardecer, a nossa dor não cabia em nenhum lugar do mundo.
O tempo com meu irmão foi ensinador de abraçar com amor todas as pessoas, de compreender que as deficiências não são limitadoras dos afetos. Que o que nos afeta em desumanidade é fechar os abraços ao outro ou dizer o desamor.
Saímos juntos da academia. Lúcio, o pai e eu. Lúcio perguntou se eu queria tomar um sorvete com eles. Eu disse que sim. O pai disse ao filho que eu era escritor e o filho quis um livro meu. Eu prometi levar. Já está comigo. Amanhã mesmo, entregarei a ele.
Fiz a seguinte dedicatória,
"Lúcio, seu nome significa luz. Você, sem saber que eu estava triste, iluminou o meu dia. Imagino quantos dias já foram iluminados por você. Receba todo o meu carinho".
Agradeço compreender as diferentes vozes. E peço a Deus a sabedoria de limpar de mim as vozes que nada dizem, a não ser ferir, e a cultivar as vozes que, despretensiosas, relembram a alegria do viver.
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