Publicado 01/09/2024 00:02
Meu filho chegou com dizeres que silenciaram qualquer outro fazer do meu dia.Não eram dizeres de tristeza, apenas. Eram dizeres de desistências. Mesmo que provisórias, quero crer.
PublicidadeEm sua escola, um aluno desistiu da vida.Meu filho, quando contou, contou que poderia ter feito alguma coisa.Eu deixei espaço para que ele prosseguisse. Chorou comigo o meu filho o choro dos que compreendem as dores que doem nos outros, dores a que os outros não conseguem dar nome, dar o tempo de permanência.
O menino que não mais conseguiu conviver com a dor já não mais estava.
Estávamos apenas nós dois.Felipe é o meu único filho.
"Pai, quando eu fiquei sabendo, eu fiquei querendo saber por que ninguém fez nada? Por que ninguém faz nada! Nem eu".
"Filho, você tem 15 anos, você faz o suficiente", foi o que eu disse.
Nem sei por que disse "o suficiente".O que é o suficiente?
"Não, pai, ele sofria bullying. Tinha 12 anos, eu não o conhecia direito, mas ouvi uma histórias..."
"Que histórias, filho"?
"Deixa pra lá, pai, tanta história triste, né? O ser humano não deu certo, não deu certo, pai".
"O ser humano é dual, filho. É lindo e é feio".
Eu dizia da feiúra moral, da desistência do outro, da inação diante da eminência da ação que dói.
Enquanto meu filho deitava no meu colo, eu silenciava e pensava no pai do menino que se foi. Do colo vazio daquele pai. Da dor indizível daquela mãe.
O menino que se foi não foi o único e não será o único a não suportar as insuportáveis pressões dos nossos dias. Eu não sou perfeito, mas sou consciente da minha imperfeição. Entendo que preciso de ajuda para entender.
Meu filho é filho de um tempo em que o brincar foi substituído pelas telas. Resisti. Mesmo adolescente, conto histórias para ele. E ele gosta.Autorizo que ele pergunte a mim o que quer.
Um dia, preocupado com a faculdade que vai cursar, com medo de não passar em medicina, seu sonho, com medo de não ser um bom médico, eu o acalmei.
"Por que tanta pressa, filho? Deixe as preocupações do amanhã para amanhã".
Eu tive um pai também contador de histórias. Que me ensinou o prazer das vagarezas. Que me compreendeu as mudanças de vontade. E que me ensinou que o mais importante era nunca deixar de ter vontade.
Vontade não é desejo. Desejo é coisa que vem e vai muito rapidamente. Vontade é força que não nos deixa desistir. Vontade é sonho que nos faz desacreditar das descrenças quando elas vêm.
Fico feliz com a tristeza do meu filho pelo filho de alguém que se foi. Ficaria triste se ele não se importasse. Se há algo que de bonito planto todos os dias, é o cultivo dos sentimentos.Planto para colher. Não projeto um filho colecionador de troféus. Vitórias e derrotas são . Projeto, apenas, um filho que não tenha pressa e que não tenha pausas na crença da vontade.
Sou médico desde que meu avô se foi em um mau atendimento. Ali, menino, eu quis tirar as dores do mundo inteiro e não desatender ninguém. Nem sempre consigo. Consigo ao menos pensar. E arrumar o que erro. E pensar novamente. E sentir. Sentir cada dor que consigo ou não consigo aliviar.
Minha mulher, Amanda, é médica, também. Ela cuida das crianças que estão chegando, é obstetra. Eu cuido dos que estão se despedindo, sou geriatra. Trabalhamos muito e conversamos mais ainda. E gostamos de nos gostar.
Meu filho descansa, enquanto eu passeio as mãos nos seus cabelos. Tenho pressa nenhuma que ele se levante. Como é bom ser colo que acolhe. Os velhos me ensinam muito no consultório. Aprendi a gastar mais tempo nas consultas. Gosto que todos gostem de estarem ali e de se sentirem os únicos no mundo quando estão comigo. Aprendi que a atenção é substantivo que significa amor.
Amor também é substantivo. Substantivo abstrato.Concreto é o que tenho em meu colo, meu filho; em minha mente, os ensinamentos do meu pai; em meu coração, a vontade de melhorar o mundo em que vivo, em que vivemos.
A única tela deste instante é o sol entrando pela janela e iluminando meu filho e eu. Não sou dono dos amanhãs. Mas sei ver o hoje. E sei agradecer.
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