Leo Motta foi convidado a assumir o cargo de conselheiro da Secretaria de Assistência SocialArquivo Pessoal
Por Karen Rodrigues*
Publicado 17/12/2020 05:00
Rio - O grave problema do número da população em situação de rua, em muitos casos invisíveis para a sociedade e desassistidos pelo poder público, foi agravado pela pandemia do novo coronavírus. Em outubro, a Prefeitura do Rio começou o censo que iria contabilizar o número desse estrato social. No ano anterior, os dados já eram assustadores: mais de 15 mil pessoas moram nas ruas, por motivos que vão à perda do emprego a desentendimentos familiares. Nesse contexto, o escritor e ex-morador de rua Leo Motta foi convidado pela futura secretária de Assistência Social da Prefeitura do Rio, Laura Carneiro, para assumir o cargo de conselheiro da pasta e ajudar no enfrentamento do problema. Em entrevista exclusiva ao DIA, Leo explicou qual será sua função no novo governo de Eduardo Paes e como pretende trabalhar usando a vivência de uma pessoa que já esteve em situação de rua.
"Eu vou agir como conselheiro, como consultor, vou fazer a ligação da população de rua com a prefeitura, indicando e traçando os melhores caminhos e planos para tratar essa população. Como eu conheci essa situação bem de perto, e de lá eu saí, encontrei um dia a porta de saída, eu sei perfeitamente o caminho que leva uma pessoa a sair dessa situação. Então, vou colaborar com as equipes técnicas através da minha experiência, da minha vivência nessa situação. Eu vou acompanhar bem de perto as equipes de abordagem nos abrigos, dando diversas sugestões, porque a população de rua não funciona com pressão, ela só funciona com atração. Então, sei perfeitamente como eu em situação de rua gostaria de ser tratado. Minha função vai ser de prestar consultoria e direcionamento", explicou.
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Apesar de ocupar pela primeira vez um cargo público, Leo já tem planos e metas como conselheiro da Secretaria de Assistência Social. Ele pretende criar uma ouvidoria para abrir um canal da pasta com a população em situação de rua, bem como realizar palestras e rodas de conversas com os acolhidos.
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"Participarei lado a lado junto com a secretária Laura Carneiro nas reuniões de equipes, visitas, e tudo aquilo que diz respeito à população de rua. As minhas metas passam por conseguir estruturar abrigos desumanizados com equipes técnicas preparadas para atender esse público, não só com alimento, mas também indicando com artes terapêuticas, psicólogos, assistentes sociais. Também, futuramente, meu plano é levar a importância de ter um programa de empregabilidade, um programa que leva a pessoa a uma capacitação e de lá sair com seu emprego", disse.
Como ex-morador de rua, Leo entende as dificuldades que pessoas nesta situação passam diariamente. Outras pautas também estão na agenda do conselheiro para reverter esse quadro, como atendimento médico diferenciado para mulheres nas UPAs e pagamento de aluguel social.
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"Eu dei algumas sugestões, como termos banheiro público nas ruas, um atendimento de saúde diferenciado para mulher que está em situação de rua. Com a mulher tendo um atendimento separado de outra mulher da sociedade dentro do equipamento da UPA, a gente conseguiria reduzir o número de mulheres gestantes em situação de rua, porque ali ela teria um planejamento familiar. Embora ela não tenha família, ela teria acesso às pílulas (anticoncepcionais), aos preservativos. Então, meu plano é trazer a dignidade e tudo de melhor para a gente poder reverter esse quadro. Sei que o desafio é grande, temos 25% das estações do BRT hoje praticamente ocupadas por pessoas em situação de rua. Meu plano também é levar a importância de se ter um aluguel social, porque temos pessoas que moram em ocupações e acompanhei diversas ações de despejo esse ano, onde pessoas ficaram desassistidas. Minha meta é cumprir com excelência o convite de dar a essa voz a população de rua dentro da secretaria".
O convite para ser conselheiro da pasta foi feito pela secretária Laura Carneiro e aconteceu após um primeiro encontro de Motta com o futuro prefeito Eduardo Paes. "Estamos trabalhando para que a equipe de reconstrução do Rio tenha vários integrantes como o Leo Motta, com a enorme sensibilidade de ter vivido situação vulnerável. Será uma honra trabalhar com ele. E que seu exemplo se multiplique em todas as áreas", afirmou a secretaria da pasta.
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"Nada melhor quem superou (essa situação) poder colaborar nesse enfrentamento, uma vez que estamos vivendo um caos com o aumento visível da população de rua. Eu tenho muito a colaborar com a secretaria, porque eu não sei o nome de todos em situação de rua, porém conheço a dor de cada um. E o mais importante, conheço o sentimento de quem não tem um endereço para voltar ao fim do dia", concluiu Leo.
Volta por cima
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Leo morou por nove meses nas ruas, de maio a dezembro de 2016, após sofrer uma overdose aos 35 anos na presença de sua mãe. Segundo ele, o sofrimento que seu vício causava na mãe foi o fator decisivo para fazê-lo sair de casa.
O uso de drogas começou aos 14 anos e seguiu por mais de 20 anos, com cocaína e crack. Leo só conseguiu se livrar do vício e deixar as ruas com a ajuda de uma instituição parceira da Prefeitura à época, a Associação Solidários Amigos de Betânia, uma entidade empenhada no processo de inclusão social de moradores de rua.
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O escritor decidiu criar uma página no Facebook onde relatava suas experiências e, em menos de 20 dias, conseguiu mais de 30 mil seguidores. Através da página, um seguidor deu a ideia sobre um livro, prontamente aceita. Depois de seis meses escrevendo o relato literário da sua vivência nas ruas, lançou 'Há vida depois das marquises', em 2019. Leo foi destaque na Bienal Internacional do Livro do Rio, em setembro daquele ano, como o primeiro ex-morador de rua a lançar um livro em todas as edições do evento.
Atualmente, além de escritor, é gestor do projeto 'A rua é casa de muitos, mas não deveria ser de ninguém' e é palestrante sobre dependência química e políticas públicas para população de rua. O novo conselheiro da secretaria de Laura Carneiro já palestrou na Comissão de Políticas sobre Drogas da OAB-RJ, no Congresso Brasileiro Sobre Saúde Mental e Dependência Química, à convite da Associação Brasileira De Estudos do Álcool e Outras Drogas, e em outros estados.
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Leo Motta ainda finaliza o próximo livro e garante que deve lançá-lo na próxima bienal. Por hobby, o escritor também se tornou modelo nas horas vagas e promove desfiles de moda no Centro do Rio para pessoas em situação de rua.
*Estagiária sob supervisão de Thiago Antunes
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