Fugindo do ex-companheiro, Beatriz está vivendo em um abrigo com a filha de 9 anosDIVULGAÇÃO/ Luis Alvarenga
Publicado 24/10/2021 06:00 | Atualizado 31/01/2022 14:44
Rio- 'Eu sempre assisti essas coisas pela televisão, mas nunca achei que pudesse acontecer comigo. A gente pensa: não, ele não é capaz de fazer isso. A verdade é que ele só não me matou porque um vizinho me socorreu.' O desabafo em tom de alerta é de Amanda (nome fictício), de 27 anos, que sofreu uma tentativa de feminicídio, em julho deste ano. Ela foi atacada pelo com oito facadas pelo ex-companheiro, com quem viveu por dois anos, por ele não aceitar o término da relação. A história de Amanda se repete com milhares de mulheres. Segundo o Dossiê Mulher 2021, lançado pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) na última semana, mais de 98 mil mulheres foram vítimas de violência doméstica e familiar no Estado do Rio no ano passado, cerca de 270 casos por dia. 
 
Amanda conta que as agressões começaram quando ela estava grávida de sete meses ao descobrir uma traição do marido. "Ele sempre foi uma pessoa tranquila e nós éramos amigos antes do namoro. Ele me pedia muito um filho e, nesse período da gravidez, se mostrou totalmente diferente, saía muito e bebia. Até que, quando eu estava com sete meses de gestação, descobri uma traição e foi aí que ele me bateu pela primeira vez: me deu um soco na barriga e me enforcou. Fui socorrida pela minha vizinha", relembrou a vítima.
 
A trajetória de sofrimento de Amanda não estava perto de acabar. Ela foi agredida mais duas vezes depois do primeiro episódio. Quando o filho nasceu, decidiu se separar.
 
"Descobri mais uma traição e ele não aceitava o término da relação de jeito algum. Me agredia, mas depois me manipulava, chorava e pedia perdão. Mesmo já separado, com outra mulher, ele invadiu a minha casa durante uma festa de família e me deu oito facadas. Naquele momento achei realmente que fosse morrer. Fiquei duas semanas sem conseguir levantar da cama e sem poder cuidar do meu filho", contou Amanda.
 
Três meses após o crime, além das feridas do corpo, as cicatrizes emocionais que Amanda carrega a levaram a procurar ajuda em um Centro Integrado de Atendimento à Mulher. "Uma amiga me trouxe e encontrei apoio, ninguém nunca fez isso por mim. Se não fossem essas mulheres que me receberam e me acolheram, eu estaria perdida".
 
Abrigos temporários para vítimas
 
As lágrimas e a voz embargada ainda são as marcas de um ciclo de violência extrema que Beatriz (nome fictício), 44 anos, não consegue esconder. Primeiro, foi um casamento de mais de oito anos em que ela chegou a ter a costela e o nariz quebrados. Depois de se separar, voltou a ser agredida até com um facão pelo novo companheiro. Traumatizada, Beatriz buscou ajuda e está vivendo, com a filha de 9 anos, na Casa Abrigo Lar da Mulher, mantida pela Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos. O espaço funciona como uma residência temporária de até seis meses para mulheres vítimas de violência doméstica sob grave ameaça e seus filhos menores de idade.
 
"Meu ex-marido me torturava de todas as formas. Consegui tomar coragem e dar um basta na situação depois que somei costela e nariz quebrados, cortes na boca, mordidas na cabeça e pelo corpo". disse Beatriz.
 
Há um mês no abrigo, ela conta que quer sair fortalecida e recomeçar. "Se não tivesse encontrado esse apoio, estaria apanhando. Quero sair daqui e reescrever minha história de uma forma diferente, em um novo lugar e ao lado da minha filha".
 
O histórico de agressões se repete com Joana (nome fictício), de 32 anos. Ela viveu momentos de pânico e há dois meses teve sair de casa e desde então está no abrigo. Espancada por quase cinco horas pelo ex-namorado, pensou que não iria sobreviver. 
 
"Tive um relacionamento de cinco meses com um homem que conheci. Ele não parecia ser violento, até que, após duas crises nervosas sem agressão física, começou a mudar o comportamento por ciúmes. Uma noite ele me puxou pelo cabelo, pelos braços e começou a me enforcar. Em seguida, bateu minha cabeça em um carro, no chão e em grades. Pedi socorro, mas ninguém apareceu. Eu caía e desmaiava muitas vezes. Quando acordava, continuava apanhando. Ele começou à 0h30 e só parou às 5h ", relatou Joana.
 
Após as agressões, a irmã e o cunhado de Joana foram os primeiros a prestar socorro. Por temer novos episódios de violência e não ter condições de buscar outro lugar para morar, foi para o abrigo com os dois filhos. 
 
A Casa Lar oferece apoio psicológico, suporte jurídico, reintegração social e assistência hospitalar. O abrigo tem 15 quartos, salas de atividades, berçário, lavanderia, biblioteca, refeitório e salão de beleza. Além de grupos de reflexão, atividades lúdicas e relaxamento que ajudam no processo de reconstrução das vítimas. O encaminhamento ao espaço é feito por meio dos Centros Especializados de Atendimento à Mulher (Ceam) ou pela Central Judiciária de Abrigamento Provisório da Mulher (Cejuvida), que funciona dentro do plantão Tribunal de Justiça.
 
Vítimas fatais da violência
 
De acordo com o Dossiê Mulher, dentre o total de mais de 98 mil vítimas de violência doméstica, 78 mulheres foram vítimas de feminicídio, e cerca de 20% desses crimes ocorreram na presença dos filhos e apenas nove delas tinham medidas protetivas contra o companheiro. Dessas vítimas de feminicídio, 52 eram mães e 34 tinham filhos menores de idade. Os companheiros ou ex-companheiros representam a maioria dos autores dos crimes (78,2%), e quase 75% das mulheres foram mortas dentro de uma residência. Mais da metade das vítimas de feminicídio tinha entre 30 e 59 anos (57,7%) e era negra (55,1%). 
 
O documento aponta ainda que mais de 40% das mulheres foram mortas por faca, facão ou canivete e 24,4% por arma de fogo. Os dados mostram ainda que uma briga motivou o crime para 27 homicidas, e o término do relacionamento foi apontado como motivação por 20 criminosos. Constatou-se também que mais da metade das vítimas já tinha sofrido algum tipo de violência e não havia registrado o caso numa unidade policial. 
 
O dado que o dossiê aponta é que foram registrados 5.645 casos de violência sexual em 2020, número 15,8% menor que o de 2019. Foi uma média de 15 por dia, ou um a cada uma hora e meia. Na análise dos crimes, se destaca o estupro de vulnerável (2.754), que é mais que o dobro dos casos registrados em 2020. Em média, sete meninas com até 14 anos foram estupradas por dia no estado.
 
Ana Paula Salles, presidente da Associação de Mulheres de Itaguaí Guerreiras e Articuladoras Sociais (AMIGAS) afirma que a pandemia piorou o cenário. "É uma epidemia de violência doméstica e de gênero no meio de uma pandemia, um verdadeiro pesadelo. Não bastasse o coronavírus, a situação das mulheres só fez piorar com os altos índices de violência doméstica em todo estado, infelizmente. Acredito que o cenário seja ainda pior, já que muitas mulheres não chegam a registrar da delegacia a agressão".
 
Ana Paula também é uma vítima de violência doméstica. Ela critica o primeiro atendimento que as mulheres recebem, principalmente se residirem em comunidades. Ela levou uma facada de seu ex-companheiro na coxa esquerda e, por morar em um bairro periférico, além da agressão, se deparou com uma estrutura deficitária em termos de atendimento a uma situação de emergência.
 
"Eu chamei a polícia e ela não veio. O bombeiro precisou ficar me dando suporte emocional pelo telefone. Eu mesma tive que estancar a ferida. Esperei até às sete da manhã pra pegar uma kombi e me dirigir à UPA mais próxima. Se uma mulher que mora em comunidade sofre uma agressão grave, como um tiro ou uma facada, a polícia não vai socorrer. Se ela recebe uma medida protetiva e um oficial de justiça precisa intimar o agressor, o oficial não vai entrar nessas áreas. É desesperador!", descreveu Ana Paula.
 
Onde a vítima de violência doméstica pode buscar ajuda:
CIAM Márcia Lyra – Centro do Rio de Janeiro
Rua Regente Feijó 15 Centro
Tel: (21) 2332-8249/ (21) 99401-4950
CIAM Baixada - Nova Iguaçu
Av. Duque Estrada 147 - Alto da Posse
Tel: (21)2698-6008/ (21) 99394-3787
CEAM – Queimados
Rua Ministro Odilon Braga 26 - Centro
Tel: (21) 26652508 / (21)99422-3889
CEAM – Itaguaí
Rua General Bocaiúva s/n° Centro
Tel: (21) 3782-9000, ramal: 2514
CEAM– Natividade
Rua Intendente Frankly Rabello 8 - Sindicato - (Ganha Tempo)
Tel: (22) 3841-2212
CEAM – Japeri
Av. São João Evangelista s/no - Engenheiro Pedreira
Tel: (21) 3691-0068
CEAM - Mendes 
Vila Westey 37, no Centro de Mendes, Sul do Estado
CEAM - Três Rios
Rua Dr. Vasconcelos 87, Centro, Três Rios
Tel: (21) 2252-2005
Casa do Direito da Mulher Daniella Perez- Av. General Ferreira do Amaral 94, Centro - Miguel Pereira;
Delegacias de Atendimento à Mulher (DEAMs) – http://www.policiacivilrj.net.br/dgpam.php
Núcleo de Atendimento aos Familiares das Vítimas do Feminicídio – (21) 2334-5849 ou pelo e-mail atendimento@seavit.rj.gov.br.
Programa 'Empoderadas' 
- Cidade de Deus - Igreja Metodista Central (Rua Miguel Salazar - 1301);
- Méier - Rua Itobi, 10;
- Copacabana - Rua Ministro Viveiros de Castro, 51 – sala 204;
- Nilópolis - Casa da Luta Nilopolitana;
- Nilópolis 2 - Av. Getulio Vargas, 2623;
- Duque de Caxias - Av. 1 entre a Rua 9 e 10 (em frente à lotada);
- Ilha da Gigoia (Barra da Tijuca) - academia do professor Tico (aos sábados)
- Disque Direitos Humanos: 0800 0234567
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