Aquela foto me transmitiu imediatamente o zelo ao tocar uma história de vida: olhar atento, mãos cuidadosas e respeito ao abrir capítulos de uma trajetória. E a imagem perdurou na minha mente por dias e diasArte: Kiko
Publicado 10/07/2022 09:00
A imagem veio de longe, lá do Sul do país, através do Instagram, e trazia um retrato da cientista Camila Silveira da Silva no Museu da História da Medicina do Paraná. Ela estava de máscara, óculos de grau e usava luvas. Tinha nas mãos um documento de identidade nos moldes de um passaporte e, à sua frente, apareciam várias folhas, antigas e amareladas, que pareciam compor um livro. Na legenda, ela dizia que se debruçava sobre um trabalho de pesquisa para uma exposição. "Quanto mais eu me envolvo com o legado da Dra. Maria Falce de Macedo, com os seus objetos e pertences, mais inspirada e empolgada eu vou ficando...", contava Camila, na legenda do post, referindo-se à primeira médica do Paraná, formada em 1919.
Aquela foto me transmitiu imediatamente o zelo ao tocar uma história de vida: olhar atento, mãos cuidadosas e respeito ao abrir capítulos de uma trajetória. E a imagem perdurou na minha mente por dias e dias. Vira e mexe, ela voltava aos meus pensamentos e eu só conseguia refletir em como também precisamos ser delicados ao conhecer o universo do outro. No livro imaginário que se abre à nossa frente quando uma pessoa entra em nosso caminho, temos a chance de folhear capítulos que não fazemos ideia de como foram escritos. Sem uma nota de rodapé nos apontando para uma referência. Precisamos, enfim, ser mais tocantes com a alma e menos com a curiosidade desmedida.
Afinal, cada um de nós tem um marcador de páginas particular da nossa trajetória. Há trechos que já sublinhamos tanto dentro de nós que chega um momento em que não queremos mais repassá-los. Nem intimamente nem em público. Ao mesmo tempo, é possível haver encontros mágicos e únicos entre confidentes, que leem passagens importantes da vida um do outro com o coração livre de julgamentos. Em instantes assim, a alma faz um pacto não verbalizado: já está subentendido que os segredos e fraquezas jamais serão trunfos numa possível divergência.
Tudo isso ainda permeava os meus pensamentos quando olhei, num dia desses, para a caixinha de bailarina na prateleira de casa. Eu a tirei do seu local habitual e a coloquei perto da máquina de escrever e de uma licoreira que foi da minha avó materna. Dei corda para que a boneca evoluísse lindamente e percebi que também é preciso delicadeza para fazê-la dançar sem despedaçá-la. Constatei, enfim, que conhecer alguém se parece com o instante em que abrimos essa caixinha mágica, com o cuidado de perceber — e respeitar — as diferentes formas de bailar pela vida e os seus ritmos bem particulares.
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