Somos acostumados aos números e às leis, quando o que nos move de fato é o afeto no seu sentido mais genuíno — tudo aquilo que nos emociona e pode nos deixar vulneráveis, mas, ao mesmo tempo, também consegue nos fortalecerArte: Kiko
Publicado 19/02/2023 09:00
A pergunta surgiu numa roda de amigos, enquanto recordávamos passagens da vida em comum e buscávamos novidades do universo um do outro durante o tempo em que havíamos ficado sem nos ver. "E você está amando?", quis saber um amigo, na outra ponta da mesa, do meu lado oposto. Confesso que achei bem inusitada a sua abordagem sem rodeios, lançada no meio de todo aquele burburinho. Tanto que fiquei matutando alguns dias sobre ela. Até que, finalmente, passei a defender que tal pergunta deveria ser mais usada quando realmente quisermos saber sobre o paradeiro do coração de quem gostamos. Afinal, mais vale o interesse sobre o estado de espírito do outro do que sobre o civil.
Penso que a pergunta talvez tenha me causado certa surpresa porque crescemos acostumados às expectativas sobre se estamos namorando, se vamos nos casar, ter ou não filhos... E, para quem já tem um herdeiro, lá vem a questão: "Quando chega o irmãozinho?" No entanto, quantas pessoas, de fato, perguntam sobre a nossa alegria?
Não é à toa que nos adaptamos desde cedo à ideia de apresentar ao mundo o nosso status acadêmico e o nosso currículo. Talvez sejamos educados para falar mais sobre as conquistas que possamos registrar em cartório, cargos e pretensões salariais. Somos acostumados aos números e às leis, quando o que nos move de fato é o afeto no seu sentido mais genuíno — tudo aquilo que nos emociona e pode nos deixar vulneráveis, mas, ao mesmo tempo, também consegue nos fortalecer.
Pensando justamente nas delicadezas que nos fortalece, lembro que guardo até hoje a aliança que foi da minha avó Ruth, que viveu uma época em que essa joia era sinônimo de felicidade e segurança especialmente para uma mulher. A relíquia não é grossa, não ostenta riqueza, apenas sua história.
Assim, achei linda a forma como recebi, num dia desses, uma obra do artista Felipe Samaro: um desenho baseado numa foto minha, embrulhada num daqueles papéis em que se lia, infinitas vezes, a palavra frágil. Nada mais emblemático, por estarmos sempre expostos ao olhar e à percepção do outro sobre as várias nuances da nossa personalidade. Aceitar essa fragilidade é um desafio na vida.
De forma criativa e inusitada, o artista ainda transformou essa embalagem na base para uma de suas pinturas, em que deu forma a um porco estilizado. Assim, dispensou os suportes mais fortes e tradicionais que pudessem ser um sustentação mais sólida para a sua arte. Entre vários tons de tintas, podia-se ler ao fundo as sílabas da palavrinha tão preciosa: frá-gil. Minha amiga Delma, aliás, viu a obra e reparou que os traços do focinho do porco em questão podem formar um novo rosto, dependendo da visão de quem aprecia a arte — e isso me faz confirmar que o nosso olhar é potente demais, basta deixá-lo em liberdade.
Imersa nesses pensamentos, lembrei que, quando algum produto ganha o status de frágil, é de praxe que passe a ser manuseado com cuidado por transportadoras e carteiros pelo mundo afora. Torna-se, assim, praticamente uma garantia de que não será danificado e será tratado com delicadeza. Aliás, sempre ouvi da minha mãe sobre um cristal da vida que, uma vez quebrado, jamais se reconstitui: a confiança.
Por tudo isso talvez nos cause um certo medo saber que a nossa alma — a grande relíquia que carregamos — não venha com um manual de como deve ser tocada. Nascemos com o instinto de protegê-la. Afinal, tudo o que ela precisa é ser vista com sutileza e doçura, sem a frieza dos status pré-estabelecidos. Se mais pessoas se importassem em saber se a nossa vida está realmente cercada de amor, talvez a gente crescesse convivendo de forma mais harmônica com os sentimentos, suas fragilidades e potências.
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