Jairo Sayão chegou a desenvolver depressão após retomar do coma e perceber que não poderá mais ter a vida que tinha antes. Ele foi reformado e hoje estuda física na faculdadePedro Ivo/ Agência O Dia
Publicado 06/03/2023 06:00 | Atualizado 06/03/2023 09:12
Rio - Em 2021, o terceiro sargento da Polícia Militar, Jairo Sayão, de 42 anos, foi baleado durante patrulhamento na Pavuna, Zona Norte do Rio. O agente ficou em coma por 49 dias e, quando acordou, teve que lidar com as consequências físicas e psicológicas da violência. Ele foi acompanhado durante seis meses pela corporação, fazendo fisioterapia e fonoaudiologia, e depois precisou ser reformado. Com a mudança do estilo de vida, Jairo entrou em depressão e luta até hoje contra a doença silenciosa. De acordo com a tenente-coronel Naiana Cordeiro, psicóloga da PM, em 2022 foram realizados 39.419 atendimentos aos agentes.


Com o objetivo de melhorar o cenário de enfrentamento às doenças psíquicas entre policiais do Rio, além de iniciativas dentro das corporações e instituições, o Governo do Estado, o Ministério Público do Trabalho do Rio (MPT-RJ) e o Instituto de Pesquisa, Prevenção e Estudos em Suicídio (Ippes) deram início, na última semana, ao Programa Segurança QPrevine, que desenvolverá o suporte terapêutico e ações de prevenção aos agentes da Polícia Civil, Degase e da Secretaria de Administração Penitenciária (Seap). Segundo a Polícia Militar, a participação na ação ainda está em trâmite — um documento deve inserir a corporação no programa.

"O que leva a gente a entrar em uma crise de ansiedade? Nós, que fazemos o papel de chefe de família, somos aqueles que provêm. Quando você se vê vítima, perde a força e se questiona de que forma vai proteger a sua família", disse Jairo. "Você se sente uma pessoa incapaz. Após um acidente desse, bate a sensação de incapacidade, como se a gente fosse inútil e não servisse mais para nada. Quando ficamos debilitados, a crise depressiva se instala na maioria das vezes. Imagina, eu tinha uma vida totalmente normal e, de repente, não tenho mais".

O sargento relatou que a parte mais dolorida é esconder seus sentimentos da família. Ele chegou a ter acompanhamento psicológico pela Polícia Militar, até o mês passado mas, ainda assim, em algumas situações, percebe-se desanimado e abatido. "Eu não gosto de falar nada para ninguém. Graças a Deus eu paro para pensar, refletir e busco forças de onde eu nem sabia que tinha. Quando vinham pensamentos autodestrutivos eu pensava: 'como vão me ver se eu desistir'? Hoje eu estou em casa e tento recomeçar a minha vida", disse.

À época do incidente, Jairo era instrutor de tiro e fazia faculdade de Educação Física. Atualmente, ele voltou para a universidade e estuda Física. Por causa dos ferimentos sofridos, ele perdeu a sensibilidade do lado esquerdo do corpo. "A polícia precisa de atenção. Nós estamos adoecendo. Eu fazia tudo, dava aula no curso de soldado, era instrutor, estudava, tudo isso era um sonho meu. De repente, você se vê machucado e tudo muda. Eu amava ser policial, isso era a minha vida. É necessário que o poder público se atente à vida do agente".

Para Jairo, um dos maiores problemas que um policial enfrenta e gera adoecimento psicológico na corporação, é a situação financeira. "Isso é assunto sério, que abala todo mundo. Muitos acabam dando muito serviço, fazendo trabalho por fora, para conseguir suprir as necessidades da família. Eu passei por um período muito difícil, ainda passo, mas tive época que tudo me dava crise de ansiedade. Hoje, é na faculdade que encontro ânimo para recomeçar".

A coordenadora-geral do Segurança QPrevine e inspetora da Polícia Civil, Meire Cristine, destacou a importância de falar sobre a saúde mental aos agentes de segurança do Rio. "Em relação ao contexto de adoecimento, a gente ainda tem uma lacuna muito grande relacionada à saúde e à segurança do trabalho nas instituições de segurança pública. Esse segmento, na verdade, para a iniciativa privada, é uma obrigação, através do cumprimento das leis, e o cumprimento das normas regulamentares previstas dentro da área de saúde e segurança do trabalho".

Segundo Meire, as questões de adoecimento acontecem diante das atividades de alta periculosidade que são desenvolvidas por esses profissionais. "Como lidar com essas questões? Embora todos tenham feito suas escolhas para seguirem esse tipo de profissão, eles não escolhem ficar doentes. Mas, existe um amparo legal", declarou. "Hoje, a gente observa que existe um número considerável de afastamento por problemas psicológicos. Se esse afastamento pudesse ser monitorado, acompanhado e diagnosticado de que aquela doença foi desenvolvida por causa do trabalho, isso por si só já despertaria interesse e teríamos atitude de prevenção".

Para ela, o programa Segurança QPrevine tem o intuito de despertar as camadas estratégicas das instituições de segurança pública para que o trabalhador possa se autocuidar, mesmo que não haja uma política pública voltada à segurança e saúde do trabalho de forma efetiva. A ação funcionará com rodas de conversas, palestras e cursos multiplicadores de prevenção, assim como de manejo clínico para que profissionais dessas corporações saibam lidar com pacientes que estejam passando por alguma crise.

"São situações complicadas. Esses profissionais estão ali porque fizeram escolhas, só que sabemos como isso traz impacto para a questão emocional, no campo de sentimentos. Sou policial civil há 32 anos. A sociedade se afasta do perigo enquanto esses trabalhadores estão indo ao encontro para conter, prevenir, reprimir e salvar vidas. No nosso cenário do Rio, a criminalidade aumenta cada vez mais", afirmou. "Precisamos pensar nessas pessoas que protegem a população. Como está a vida delas? Elas voltam para casa, têm colegas e familiares que também temem que aconteça algo. Eles escolheram ser policiais por amor, mas ninguém escolhe por amor adoecer, morrer ou até mesmo se matar. O poder público precisa dar atenção ao emocional da categoria"

A psicóloga PM Naiana Cordeiro destaca que a preocupação da corporação, dentro da psicologia, é em relação ao risco que o profissional de segurança está exposto o tempo todo no Rio. "Ele pode ter um colega querido morto, pode ser atingido, pode ter medo de se deslocar por morar em região de risco, por isso é importante os trabalhos preventivos que estamos fazendo, que é prevenir o estresse pós-traumático do policial". De acordo com Naiana, o policial militar que se envolve em uma ocorrência com morte ou ferimento é submetido a uma avaliação interna e, a partir disso, caso esteja apresentando sinais de estresse, o agente é encaminhado à psiquiatria ou para acompanhamento psicológico regular.

Atualmente, a corporação conta com 115 psicólogos que estão distribuídos em hospitais, policlínicas e unidades operacionais, além da administração e instituições de ensino. "Há um movimento do comando geral para aumentar o quadro de saúde e melhorar o cuidado com o policial. A psicologia da PM atua tanto na formação de oficiais, praças e processos seletivos, quanto atendendo os familiares e dependentes nas clínicas e hospitais. Quando entra na emergência um agente que foi atingido por arma de fogo, a gente já tem um protocolo de abordagem para o fortalecimento da saúde mental dele".

A Polícia Militar informou que há um trabalho em andamento que é a capacitação de ações de prevenção e apoio psicológico, realizado pelo departamento de psicologia, treinando oficiais mais modernos para que eles possam atuar em ações de prevenção e pósvenção do suicídio. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o número de suicídios de policiais civis e militares no Brasil cresceu 55% de 2020 para 2021, com 101 vítimas. No Rio de Janeiro, o aumento foi de 150% entre 2019 e 2021, de seis para 15 casos.

De acordo com o diretor da policlínica da Polícia Civil, João Marcello Branco, a iniciativa faz parte do termo de cooperação técnica assinado entre o Ministério Público do Trabalho (MPT) junto com as instituições de saúde e segurança pública. "Eles querem fazer um promocional, uma contrapartida do MP em orientar, levantar dados e auxiliar os trabalhadores de maneira geral. Eles enxergam o servidor público como qualquer outro, só que às vezes essa questão de saúde mental ficou um pouco negligenciada. Com a Covid-19 e nível de estresse alto dos agentes de segurança, o processo de adoecimento cognitivo e mental tem gerado muito risco de suicídio".

João explicou que o programa ajudará a prevenir doenças mentais que possam evoluir para autodestruição dentro da categoria. "O servidor da segurança pública é um trabalhador que, na verdade, se autodenomina super-herói. Com estes serviços que estamos inaugurando, entraremos também com oficinas de quebra de paradigma. Muitos têm a ideia de que quem precisa de psiquiatra ou psicólogo é fraco, é aquele que não serve mais para ser reinserido no mercado de trabalho. Temos que destruir essa imagem".

Ele também afirmou que a falta de monitoramento e de cuidado com a saúde mental dos policiais pode fazer toda a sociedade ser prejudicada. "Todos podem desenvolver algum problema e, se eles não falarem, toda a rede pode ficar comprometida. A família pode adoecer junto, inclusive. Tudo isso gera um problema social muito grande e, aquele servidor que está com problemas e continua no trabalho presta mal serviço à população. A chave do sucesso é termos uma rede de cuidado, de prevenção".

Fim do 'policial-herói'

A professora e pesquisadora Jacqueline de Oliveira Muniz, da Universidade Federal Fluminense (UFF), explicou que a ideia do policial ser super-herói, não sentir dor, não ficar doente e não ter medo, é fantasiosa. "Os policiais são trabalhadores como outro qualquer. O sistema quer implantar uma mentalidade de que eles não quebram o pé, não têm doenças ocupacionais, não têm doenças psiquiátricas, então tudo isso gera um grande tabu para a categoria. O policial é humano também".

Jacqueline também é antropóloga e cientista política e foi chefe da Secretaria de Segurança Pública do Rio em 1999, onde criou e implementou projetos, como o Instituto de Segurança Pública (ISP), a Corregedoria Geral Unificada das Polícias e o Fundo Nacional de Segurança Pública. Sua pesquisa sobre a vitimização do policial no Rio, em 1997, foi a pioneira ao detalhar as circunstâncias que um agente da lei se vitimiza.

"Esse relatório foi inédito e mostrou ao país as doenças ocupacionais que o policial estava exposto. Os PMs não procuravam apoio terapêutico com medo de sofrer discriminação dentro da própria polícia. Isso porque o guerreiro não sente dor, não chora, não fica triste, não tem direito ao trauma. Essa figura do ser humano sem sentimento, essa ilusão vendida, não existe", disse.

No trabalho, as doenças psiquiátricas relacionadas à saúde ocupacional acarretavam em doenças de pele, pressão alta, entre outras. "A taxa de licenciamento era alta. O agente tinha vergonha de seguir tratamento porque sabia que seria estigmatizado, teria sua arma cautelada, então muitos escondiam o que sentiam. Eles mascaravam e escondiam o sofrimento psíquico. Muitos também se dopavam para superar o cansaço e conseguir dormir".

Jacqueline ressaltou que os governos precisam reconhecer que há direitos humanos para o policial também. "É importante chamar a atenção para a necessidade de política de segurança e saúde. O policial não é máquina para ficar o tempo todo vendendo mão de obra, fazendo bico para melhorar salário. Isso aumenta ainda mais o estresse e tira o agente da convivência com a sociedade e faz ele ser estrangeiro até mesmo dentro de sua própria família", declarou. "Ele precisa ter vida social, porque sem ela, é como se ele não se sentisse querido ou esperado em lugar nenhum. É necessário requalificar as pessoas, trazer de volta a autoestima, dar segurança para o servidor. Um profissional inseguro, assustado, não é capaz de prover segurança para ninguém porque ele próprio está amedrontado".

Para ela, a partir do momento que o policial não tem um lugar de escuta, ele vai se tornando violento. "Ele precisa ser ouvido, suas queixas precisam ser atendidas. Precisamos ter sentido de coletividade. É importante a reabilitação dessas pessoas dentro das instituições. É normal o policial ter medo como qualquer outro ser humano. Ele pode sim ter medo de bala, medo de se machucar. O problema mental vitimiza a sociedade e o policial". 

O programa

O Instituto de Pesquisa, Prevenção e Estudos em Suicídio (IPPES) implementará um programa com pesquisa de diagnóstico e formação na prevenção e pósvenção de suicídio para agentes da Polícia Civil, Secretaria de Estado de Administração Penitenciária e Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase), que firmaram uma cooperação técnica com o MPT/RJ, patrocinador da iniciativa. O Segurança QPrevine, vai atuar em três eixos: pesquisa e diagnóstico; construção de boletins baseados em levantamento de dados (com notificação de suicídios, tentativas de suicídio e homicídios seguidos de suicídios); treinamento, formação e apoio psicoterapêutico aos profissionais.

Haverá oficinas de autocuidado e de gestão humana para gestores, agentes internos e operacionais, destacando a importância da saúde mental na segurança pública, além de rodas de conversa com multiplicadores de prevenção ao suicídio. O objetivo final é que as instituições criem ações próprias de prevenção. Será oferecido apoio psicoterapêutico pela PUC-Rio e psiquiátrico pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), de forma on-line. O Hospital São Francisco de Assis receberá internações de pacientes em situações críticas.

A presidente do IPPES, Dayse Miranda, afirmou que com o passar do tempo, o cenário de policiais com problemas psicológicos complicou. "O Seguranca QPrevine é o nosso trabalho, a nossa metodologia que desenvolvemos, é uma parte do projeto de promoção de saúde mental que o MP está oferecendo, por isso a gente contribui com estudos, com capacitação, oficina de reflexão, treinamento para lideranças e gestão mais humanizada".

Ela também destacou que a última etapa do projeto é muito importante, pois é esperado que se crie uma rede de profissionais de saúde na área de psicologia para complementar a demanda que é muito grande. "Eu vejo esse encontro como algo que marca o compromisso do estado com a saúde mental que é um direito de todos da segurança pública. Estou com muita esperança das coisas darem certo.

"Essa iniciativa é uma oportunidade que o estado do Rio está tendo para reverter o jogo. Há muitos anos as políticas públicas foram todas voltadas para reproduzir uma lógica cruel que dava a ideia de que o humano não é valorizado. A gente quer o contrário: queremos mostrar que esses policiais trabalham muito e precisam do apoio do estado. Não é equipamento novo, é necessário promover a saúde mental deles também".
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