Ana Flávia, primeira mulher negra a assumir a Diretoria-geral do Arquivo Nacional, quer priorizar a diversidade e a cidadaniaDivulgação
Publicado 03/04/2023 06:00
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Rio - A diversidade de grupos sociais, o direito à memória e a construção da escuta e valorização do servidor público são algumas das pautas priorizadas pela nova diretora-geral do Arquivo Nacional, Ana Flávia Magalhães. Historiadora e jornalista, ela é a primeira mulher negra a ocupar o cargo dentro da instituição, que reúne um acervo robusto, com cerca de 1,91 milhão de fotografias, 44 mil mapas e plantas arquitetônicas, filmes, registros, entre outros. Para ela, sem um reencontro com a história do país, não há chance de resolver os desafios estruturantes, que necessitam de diálogo e abertura.
Para cumprir as missões estipuladas, Ana Flávia explicou que há uma série de desafios que vão desde questões estruturais até a garantia do pleno cumprimento do objetivo maior da instituição. Ela declarou que firmou um compromisso para superar os entraves que fragilizam a imagem do Arquivo Nacional — instrumento de promoção da cidadania, acesso à informação e direito à memória.
"Tenho dito que uma das nossas prioridades é comunicar esse novo momento em que não precisamos esconder nossos traumas e fraturas. Ao contrário, precisamos explicitar o que precisa e merece a nossa atenção como sociedade, como Nação. Sem um reencontro com a nossa história, não teremos chance de resolver os desafios estruturantes do Brasil. O Arquivo Nacional, ao longo dos anos, tem empenhado esforços, por força da ação de servidores, para sustentar a sua legitimidade não apenas como instituição pública, mas como órgão estratégico para promover a cidadania", disse.
As adversidades mencionadas se referem ao exercício da cidadania plena no Brasil, sobretudo para segmentos que, segundo ela, são historicamente negligenciados e desvalorizados. "Não tenho a ilusão de que a presença em si de mulheres negras em lugares de decisão, como há em outras pastas nesse governo, signifique a superação dos problemas que temos enfrentado historicamente. Mas, me sinto muito honrada por estar à frente de uma instituição que é estratégica para a promoção de uma série de ações de reparação histórica que são fundamentais e beneficiam a sociedade brasileira como um todo".
Antes de Ana Flávia assumir a direção-geral como titular, a servidora Maria Izabel de Oliveira comandou a função por poucos meses, mas apenas de forma interina. "Assim como ela, outras mulheres negras servidores do Arquivo Nacional poderiam ter sido acionadas para assumir não apenas provisoriamente. Eu vejo a repercussão da minha chegada como uma oportunidade de desnaturalizar essa sub-representação. Por um lado é uma grande honra estar à frente dessa instituição tão importante para o país e para a nossa democracia, por outro é um grande desafio". 
De acordo com a jornalista, o Arquivo Nacional tem duas frentes de atuação principais que se articulam por força da missão institucional de garantir o direito à memória. Nesse sentido, explica, é necessário que o órgão seja capaz de dialogar com as demandas e necessidades dos diferentes segmentos e usuários. "Isso diz respeito não apenas a pesquisadores, mas também cidadãos e cidadãs que têm interesses de não especialistas. Além disso, algo que muita gente desconhece é que o Arquivo Nacional atua direta e indiretamente na gestão dos documentos produzidos pela Administração Pública Federal. Esse trabalho é importante para fornecer subsídios para a formulação e o monitoramento de políticas públicas em diversas áreas".
Um dos desafios ressaltados foi o de debater o impacto dos últimos anos no projeto Memórias Reveladas sobre a ditadura militar. Segundo Ana, a nova gestão irá atuar para o reposicionamento desse projeto e de sua importância social para que atenda à demanda pública por mais informações sobre esse período. "Outra ação que desenvolvemos logo na chegada foi garantir a nossa presença no Comitê Gestor do Cais do Valongo, sítio arqueológico na região central do Rio. Até então, não tínhamos qualquer participação do órgão nesta iniciativa, mesmo estando situados nesse território da Pequena África e possuindo registros fundamentais desse período", destaca.
A nova diretora também firmou o compromisso de construir uma gestão que se preocupe e dê mais atenção aos servidores do órgão. "Eles nos relataram situações muito desgastantes vividas nos últimos anos. O Arquivo é uma instituição viva por força da ação deles, que serão prioridade desta gestão". A gestão também contemplará grupos sociais que têm confrontado políticas de memórias, segundo ela, que os colocam em condição de irrelevância. "Temos nos reunido com representantes dos segmentos que serão prioritários (pessoas negras, indígenas, da comunidade LGBTQIA+, comunidades periféricas), e essa agenda vai se intensificar. Esses segmentos sociais não são acessórios, apêndices da 'verdadeira história', mas sim sujeitos decisivos para a história brasileira".
De acordo com Ana Flávia, há atores que se mostraram dispostos a contribuir com o processo de reconstrução das instituições públicas brasileiras, como o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, onde o Arquivo Nacional passou a existir com o status de secretaria. "Tivemos uma grande conquista recentemente, anunciada pela ministra Esther Dweck, que foi a destinação de R$ 3,3 milhões para resolver um dos principais problemas que historicamente afeta o complexo arquitetônico da nossa sede, aqui no Rio. O recurso será investido para promover a reparação dos sistemas geradores de energia elétrica, que são estratégicos para o funcionamento do Arquivo, mesmo em momentos de falta de fornecimento de energia".
Nos últimos anos, o Arquivo Nacional tem sofrido com incidentes decorrentes de problemas estruturais em seus prédios. A pasta atua, junto com a instituição, para requalificação desses espaços.
História
Ana Flávia é nascida e criada em uma cidade-satélite do Distrito Federal, chamada Planaltina, a cerca de 40 km do centro de Brasília. Filha de uma professora de matemática da rede pública, todo o seu percurso na educação básica se deu em escolas públicas. "Minha mãe foi a pessoa que me ensinou a escrever e a sonhar. Mais tarde, fiz uma primeira graduação em jornalismo, em uma universidade privada de Brasília, como vários outros estudantes negros e pobres buscavam o ensino superior no final dos anos 90".
Mesmo cursando Jornalismo, Ana Flávia desenvolveu um interesse por História. Foi a partir daí que ela resolveu ingressar no mestrado na Universidade de Brasília (UnB) nessa área, com doutorado pela pela Universidade de Campinas (Unicamp). "Minhas pesquisas enfatizaram a trajetória de homens negros livres atuantes na imprensa e na política brasileira, mesmo antes do processo de abolição. Então, sempre fui usuária de arquivos públicos, entre eles, o Arquivo Nacional. Esses espaços foram e seguem sendo fundamentais para o exercício do meu ofício de historiadora e como cidadã", apontou.
Encantada pelas capitais nacionais anteriores - Salvador e Rio de Janeiro - Ana Flávia se considera do samba, do axé, do funk, do rap, do teatro, do cinema, das artes e das lutas populares. "Adoro futebol e nutro duplo pertencimento futebolístico no Flamengo e no Bahia. Sou dessas que, assim como Gonzaguinha, acham mesmo que as pessoas são 'a coisa mais maior de grande', uma expressão aparentemente errada, mas certamente muito apropriada quando se vive comprometida com a justiça e a liberdade".
Segundo ela, o convite para assumir o Arquivo Nacional foi uma surpresa. No início ela teve dúvidas pois preferia permanecer na sociedade civil, na academia e em outros espaços de construção política popular. "Contudo, ouvi de diferentes pessoas que me são referências sobre o quão estratégico é esse espaço para a preservação de um valiosíssimo patrimônio nacional: a nossa memória, do nosso povo, de forma plural. E é esse o nosso compromisso, com todo esse coletivo: de que estaremos a serviço da promoção da cidadania e direitos humanos neste país", finalizou.
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