Publicado 30/04/2023 06:00
Rio - Rapadura, macaxeira, baião de dois, queijo coalho e tapioca na manteiga. Não é preciso pegar um avião para provar essas iguarias nordestinas, já que os lojistas da Feira de São Cristóvão, na Zona Norte, trabalham para que a gastronomia e a cultura seja ainda mais forte no Rio. Com o edital de concessão publicado, o medo da privatização e o possível fim da tradição assola o local - embora os comerciantes reconheçam a importância obras de reparo na estrutura.
O ex-gestor público da feira e cantador popular, Marcus Lucenna, 63 anos, acredita que é necessário que haja uma conversa e um plano para não deixar o vendedor na mão. "Essa licitação é algo que me preocupa. Vão fazer obra ali que vai durar uns três anos, ou seja, quase trinta meses. Como os feirantes viverão? Como vai ser? Tem feirante que tem restaurante lá fora, tudo bem, mas há outros que só possuem loja aqui dentro, é o sustento deles", disse.
De acordo com ele, privatizar um espaço como esse precisaria de uma audiência pública e de organização: "Não é colocar um empresário para tomar conta. Para mim, tem que ter muita discussão. A gente quer que a feira funcione, que o frequentador chegue ali e encontre tudo limpo, bonito. Não queremos que a cultura nordestina desapareça dali, imagina se esse empresário que ganhará a licitação transformar o estabelecimento em um shopping? Um horror. Quem trabalha ali já teve que sobreviver a quase três anos de pandemia, sem trabalhar. Agora isso".
Marcus, que chegou ao Rio em 1989 e lançou o primeiro disco no coreto da feira, que acontecia aos domingos, explicou que não é contra a privatização, mas quer que ela seja bem explicada e compreendida por todos. "Eu quero melhorias para o pavilhão, modernizar a estrutura e tudo mais. Só não quero que descaracterize o local, que torne aquilo um shopping, porque isso o Rio tem de sobra. Para mim, a feira é uma extensão da minha terra e sou contra qualquer atitude que possa ser prejudicial a cultura nordestina", disse ele, que é natural de Mossoró, no Rio Grande do Norte.
Segundo Marcus, de 2009 a 2013, durante sua gestão, a Feira de São Cristóvão contava com 600 empreendimentos gastronômicos, artesanatos, karaokê, sete palcos, sendo dois grandes e quatro de pé de serra e outro no centro do pavilhão.
"Gerávamos dez mil empregos indiretos e três mil diretos. Com a pandemia, assim como todo mundo, a feira teve problemas, ficando mais de um ano sem funcionar. Muitas lojas faliram, barracas fecharam, mesmo assim, até hoje, ela movimenta cerca de trinta mil pessoas por fim de semana, em data de evento esse número ainda aumenta. A feira é importante não só para quem trabalha, mas também para quem frequenta", afirma.
A vendedora Francisca Alda Hortênsia, conhecida como Chiquita, nasceu no sertão do Ceará e veio para o Rio para tentar uma vida melhor. Ela começou na feira aos 16 anos de idade, completando hoje 44 anos de trabalho.
A vendedora Francisca Alda Hortênsia, conhecida como Chiquita, nasceu no sertão do Ceará e veio para o Rio para tentar uma vida melhor. Ela começou na feira aos 16 anos de idade, completando hoje 44 anos de trabalho.
"Eu tenho muito orgulho de ser nordestina e feirante. Acho que a feira precisa sim de um investidor parceiro porque ela tem mais de vinte anos de obra e, para o fluxo de pessoas que recebe, é importante uma modernização e manutenção também. Mas, queremos um investidor que pense no feirante, que não queira tirar o que é nosso, que é a nossa cultura", disse.
Chiquita informou que não foi conversado ainda sobre o projeto com os comerciantes: "Não foi feita nenhuma maquete e nem foi conversado com a a gente para nos tranquilizar. Nós não conhecemos nada desse processo. Eu, por exemplo, soube que tem mais de 50 folhas esse edital e, provavelmente, as pessoas desconhecem ali o que seja bom. Talvez esteja faltando um pouco de respeito com as pessoas donas dessa cultura".
O secretário municipal de coordenação governamental, Jorge Arraes, disse que a empresa que vencer a licitação precisará cumprir o que está no edital, que no caso é respeitar a atividade econômica realizada naquele ambiente. "Qualquer empreendimento terá que ter um viés nordestino. Por exemplo, quem quiser fazer um show de rock ali não pode, nem festa rave. Tem que ter o forró. Essa preocupação da Feira de São Cristóvão virar um shopping é descabida. Primeiro, estamos fazendo uma concessão. Quem ganhar vai poder exercer bilheteria, locação de espaço, estacionamento, enfim...", garantiu.
Para o secretário, o protesto contra a licitação faz parte da associação que coordena a feira, que está preocupada em perder a posição: "Cumprindo a legislação, de fato a associação não coordenará mais o uso do espaço. Claro, ela continuará existindo, representando lojistas, mas não é uma concessionária, não tem formalidade com o município. O pavilhão é municipal"
Ele também afirmou que não será uma privatização e tudo que fala a respeito da tradição nordestina será mantida: "Vamos dar prioridade aos lojistas. Queremos modernizar o espaço da feira, que hoje se sustenta com carro pipa, luz de gerador, de forma precária. Se tudo der certo, sem interrupção, devemos contratar o novo concessionário em junho. Vamos orientar um plano de ataque para que a obra leve em conta os lojistas".
Estrutura
O coordenador do curso de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio, professor Alder Catunda, foi um dos responsáveis pelo projeto de instalação da Feira de São Cristóvão dentro do pavilhão, projeto do arquiteto Sérgio Bernardes. "Foi um processo interessante, teve muita participação da galera comerciante na época, em meados e 2003, 2004. O nosso papel foi organizar a feira lá dentro de maneira que pudesse ser proveitosa para o espaço. Por exemplo, tinha que ter frigorífico instalado, essas coisas", disse.
O pavilhão foi uma instalação feita para abrigar feiras internacionais, segundo Alder: "O Rio sempre teve vocação de receber coisas de fora, não é de hoje que somos uma cidade de eventos. Ele tinha uma cobertura muito ousada, que é uma superfície, uma curva reversa que a gente chama, complexa do ponto de vista da construção. Um dia, houve uma ventania forte e destelhou ela. Mas, era algo muito interessante".
De acordo com ele, a ideia da feira surgiu dos próprios comerciantes, que já trabalhavam ao redor do local há muito tempo, mas de maneira precária, embaixo do viaduto, com lonas estendidas. "Eles queriam ir lá para dentro porque viram que a estrutura ali estava abandonada e sem sentido, e eles do lado de fora, sem acesso a serviços elétricos ou hidráulicos. A concessão do pavilhão foi feliz porque deu utilidade a um edifício histórico", lembra.
Como urbanista, Alder enxerga o espaço como uma potência cultural: "Por muitos anos, São Cristóvão foi o lugar que recebia imigrantes nordestinos que vinham no pau de arara. A praça, perto do pavilhão, era onde os nordestinos desciam. E, foi ali que, na década de 40, foi feito o primeiro comércio de produtos nordestinos, trazendo movimento àquela área que estava decadente".
Para ele, a feira sempre teve um papel social que faz as pessoas se encontrarem. "Ali é um lugar de reverberação cultural, e para os grupos nordestinos do Rio virou um ponto de referência. Se há possibilidade de revitalização ali, os comerciantes têm uma capacidade grande de organização e de potencial criativo. Hoje em dia essa mania de privatizar tudo não sei se é a melhor saída", completa.
A Feira
O professor de geografia e sociologia, Jorge Luiz Fernandes, explicou que a Feira de São Cristóvão é uma vitória dos nordestinos que, muita das vezes, eram humilhados no Rio.
Chiquita informou que não foi conversado ainda sobre o projeto com os comerciantes: "Não foi feita nenhuma maquete e nem foi conversado com a a gente para nos tranquilizar. Nós não conhecemos nada desse processo. Eu, por exemplo, soube que tem mais de 50 folhas esse edital e, provavelmente, as pessoas desconhecem ali o que seja bom. Talvez esteja faltando um pouco de respeito com as pessoas donas dessa cultura".
O secretário municipal de coordenação governamental, Jorge Arraes, disse que a empresa que vencer a licitação precisará cumprir o que está no edital, que no caso é respeitar a atividade econômica realizada naquele ambiente. "Qualquer empreendimento terá que ter um viés nordestino. Por exemplo, quem quiser fazer um show de rock ali não pode, nem festa rave. Tem que ter o forró. Essa preocupação da Feira de São Cristóvão virar um shopping é descabida. Primeiro, estamos fazendo uma concessão. Quem ganhar vai poder exercer bilheteria, locação de espaço, estacionamento, enfim...", garantiu.
Para o secretário, o protesto contra a licitação faz parte da associação que coordena a feira, que está preocupada em perder a posição: "Cumprindo a legislação, de fato a associação não coordenará mais o uso do espaço. Claro, ela continuará existindo, representando lojistas, mas não é uma concessionária, não tem formalidade com o município. O pavilhão é municipal"
Ele também afirmou que não será uma privatização e tudo que fala a respeito da tradição nordestina será mantida: "Vamos dar prioridade aos lojistas. Queremos modernizar o espaço da feira, que hoje se sustenta com carro pipa, luz de gerador, de forma precária. Se tudo der certo, sem interrupção, devemos contratar o novo concessionário em junho. Vamos orientar um plano de ataque para que a obra leve em conta os lojistas".
Estrutura
O coordenador do curso de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio, professor Alder Catunda, foi um dos responsáveis pelo projeto de instalação da Feira de São Cristóvão dentro do pavilhão, projeto do arquiteto Sérgio Bernardes. "Foi um processo interessante, teve muita participação da galera comerciante na época, em meados e 2003, 2004. O nosso papel foi organizar a feira lá dentro de maneira que pudesse ser proveitosa para o espaço. Por exemplo, tinha que ter frigorífico instalado, essas coisas", disse.
O pavilhão foi uma instalação feita para abrigar feiras internacionais, segundo Alder: "O Rio sempre teve vocação de receber coisas de fora, não é de hoje que somos uma cidade de eventos. Ele tinha uma cobertura muito ousada, que é uma superfície, uma curva reversa que a gente chama, complexa do ponto de vista da construção. Um dia, houve uma ventania forte e destelhou ela. Mas, era algo muito interessante".
De acordo com ele, a ideia da feira surgiu dos próprios comerciantes, que já trabalhavam ao redor do local há muito tempo, mas de maneira precária, embaixo do viaduto, com lonas estendidas. "Eles queriam ir lá para dentro porque viram que a estrutura ali estava abandonada e sem sentido, e eles do lado de fora, sem acesso a serviços elétricos ou hidráulicos. A concessão do pavilhão foi feliz porque deu utilidade a um edifício histórico", lembra.
Como urbanista, Alder enxerga o espaço como uma potência cultural: "Por muitos anos, São Cristóvão foi o lugar que recebia imigrantes nordestinos que vinham no pau de arara. A praça, perto do pavilhão, era onde os nordestinos desciam. E, foi ali que, na década de 40, foi feito o primeiro comércio de produtos nordestinos, trazendo movimento àquela área que estava decadente".
Para ele, a feira sempre teve um papel social que faz as pessoas se encontrarem. "Ali é um lugar de reverberação cultural, e para os grupos nordestinos do Rio virou um ponto de referência. Se há possibilidade de revitalização ali, os comerciantes têm uma capacidade grande de organização e de potencial criativo. Hoje em dia essa mania de privatizar tudo não sei se é a melhor saída", completa.
A Feira
O professor de geografia e sociologia, Jorge Luiz Fernandes, explicou que a Feira de São Cristóvão é uma vitória dos nordestinos que, muita das vezes, eram humilhados no Rio.
"O nordestino veio para cá, principalmente do sertão e do agreste, em função da concentração de terras, explorado por latifundiários, e vinha tentar a vida na cidade. Muitos se especializavam na construção civil, de lá já ficava como porteiro, faxineiro do prédio, ou na culinária. Aí que entra a feira de São Cristóvão. O nordestino nunca perdeu a característica regional dele e sempre foi ligado à arte, à alimentação, ao vestuário, folclores também", afirma Jorge.
De acordo com ele, a feira é tão importante que o estado reconheceu e legalizou: "Ela era clandestina e começou com umas vinte barracas, depois cinquenta, depois mais de cem que ocupavam ali a parte externa de todo o campo de São Cristóvão. O estado então percebeu que era melhor ganhar impostos com os nordestinos e, claro, viram que eles são contagiantes, com o forró, xote, comida e bebida. Essa é a essência da feira. Eu sou totalmente contra a privatização dela porque é querer pegar algo que eles fizeram com orgulho e dedicação e usufruir".
Mesmo com toda a infraestrutura dada pela prefeitura, como banheiro e água, Jorge declarou que é importante que a raiz do espaço cultural não se perca: "É o nordeste e o empreendedorismo dos barraqueiros que fazem aquele lugar. A iniciativa privada irá entrar com dinheiro, mas é muito importante que eles conversem com os comerciantes. Esse lugar é um patrimônio cultural do estado do Rio".
De acordo com ele, a feira é tão importante que o estado reconheceu e legalizou: "Ela era clandestina e começou com umas vinte barracas, depois cinquenta, depois mais de cem que ocupavam ali a parte externa de todo o campo de São Cristóvão. O estado então percebeu que era melhor ganhar impostos com os nordestinos e, claro, viram que eles são contagiantes, com o forró, xote, comida e bebida. Essa é a essência da feira. Eu sou totalmente contra a privatização dela porque é querer pegar algo que eles fizeram com orgulho e dedicação e usufruir".
Mesmo com toda a infraestrutura dada pela prefeitura, como banheiro e água, Jorge declarou que é importante que a raiz do espaço cultural não se perca: "É o nordeste e o empreendedorismo dos barraqueiros que fazem aquele lugar. A iniciativa privada irá entrar com dinheiro, mas é muito importante que eles conversem com os comerciantes. Esse lugar é um patrimônio cultural do estado do Rio".
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