Major Gabriela Rocha Bernardes em contato com representantes de grupos armados no SudãoDivulgação
Publicado 15/05/2023 06:00
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Rio - De volta ao Rio há pouco mais de uma semana, a major do Exército Brasileiro Gabriela Rocha Bernardes acompanhou de perto um dos principais conflitos armados que acontecem hoje no mundo: a disputa por poder, no Sudão, entre as Forças Armadas do país e o grupo paramilitar Forças de Apoio Rápido (RSF, na siga em inglês). A militar integra o comitê da Organização das Nações Unidas (ONU) que monitora o cumprimento do acordo de cessar-fogo que havia sido firmado em 2020. O pacto foi violado em 15 de abril.
Nesta entrevista ao DIA, a major conta que fiou em meio ao fogo cruzado, numa escalada de violência que atingiu um nível acima do previsto: "Tudo estava caminhando bem para a transição democrática no país", diz a militar, que aguarda orientações da ONU para retornar à missão de paz.   
O DIA - Qual foi a sua missão no Sudão?

Major Gabriela Rocha Bernardes - Eu cheguei lá em junho de 2022 para atuar no Comitê Permanente de Cessar-Fogo da Missão Integrada das Nações Unidas de Assistência à Transição no Sudão (Unitams). Minha função era de Oficial de Relatório. Eu tinha que monitorar o cumprimento do acordo de cessar-fogo, firmado em 2020 entre o governo do Sudão e cinco grupos armados legalizados, e produzir relatórios diários, semanais, mensais e trimestrais para órgãos como o Alto Comissariado da ONU, em Nova York. Também acompanhava a implementação de acordos de segurança, que incluíam, por exemplo, a integração de um grupo armado às Forças Armadas do Sudão. E atuava no acompanhamento e apuração de eventuais violações desses acordos e outros casos de violência e conflitos tribais. Esses acordos têm o objetivo de manter a paz e a transição para um governo democrático no país.

Essas atividades envolviam trabalho de campo?

Sim, tínhamos reuniões frequentes com representantes das Forças Armadas do Sudão e dos grupos armados signatários do acordo de paz, para saber se as metas do cessar-fogo estavam sendo cumpridas. Sempre seguindo os protocolos de segurança da ONU. Nos deslocávamos somente em grupos, de casa para os locais de trabalho e vice-versa. Fazíamos também workshops para explicar a esses representantes e à sociedade sudanesa os termos dos acordos de cessar-fogo e de segurança. Nessas ocasiões, explicitamos a importância de uma maior participação de liderança das mulheres que integram as forças militares e no estabelecimento de diálogo entre elas e as mulheres da sociedade civil, para que estas se sentissem mais seguras e pudessem fazer denúncias sobre eventuais situações de violência.
Qual era contexto político do país quando você chegou lá?

O então presidente (Omar al-Bashir), que governou o país por 30 anos, havia sido deposto em 2019 e uma junta de militares e civis passou a governar o país. Até que, em 2021, houve um golpe dos militares, que assumiram o comando. Mas, ainda assim, o acordo de cessar-fogo, firmado em 2020, estava sendo cumprido. Havia denúncias de violação em apuração, mas tudo estava caminhando bem para a assinatura do acordo final para a alternância política, com a concretização de uma transição para um governo civil democrático. A violação se deu agora, a partir do dia 15 de abril, quando os militares e o grupo paramilitar mais forte entraram em conflito, demonstrando um poder de fogo e violência acima do previsto.
Como ficou sua situação neste momento?

Eu morava em uma espécie de condomínio no Norte de Darfur, numa região do deserto do Saara, onde a nossa equipe do Comitê de Cessar-Fogo estava alocada. Recebemos orientação da ONU para ficarmos em casa e não sairmos de jeito nenhum. Ficamos no meio do fogo cruzado. Mas eu estava preparada para isso, desde os treinamentos que havia realizado ainda no Rio, no Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil (CCOPAB), onde passei por instruções que simularam momentos como o de evacuação de um local de conflito, o que aconteceu dias depois, quando fomos para o Chade e de lá para Uganda. Agora, estou passando por um período de recesso, que já estava previsto, e vou retornar para minha missão dentro de 15 dias, aproximadamente. Ainda estamos aguardando orientações da ONU de para onde iremos.
Que situações passou nesse período em que ficaram em meio ao fogo cruzado? 
Ouvia intensos tiroteios e muitas explosões próximas da minha casa. Começaram pela manhã do dia 15 e foram até umas 21h. Em seguida, acalmaram e recomeçaram por volta das 3h da madrugada e foram até umas 7h ou 8h. Isso se repetiu nos três primeiros dias. Depois houve variações, mas sempre alternando intensidade e frequência de confrontos com períodos de tranquilidade. Nesse momento, era preciso manter a calma em primeiro lugar. Procurar, dar e receber notícias sobre a situação de cada um da nossa equipe, tentar levantar informações sobre o que estivesse acontecendo, dizer à família e aos amigos que estava tudo bem, e ter paciência e resiliência para seguir as orientações de segurança.
Você ainda acompanha informações sobre o que está acontecendo no Sudão?

Sim. Acabo monitorando remotamente. Até porque fiz amigos lá, que nasceram e moram no Sudão, como secretárias, motoristas e tradutores que trabalharam conosco nesses 11 meses e vizinhos da região em que morei. O conflito está sendo entre as Forças Armadas do Sudão e as Forças de Apoio Rápido (RSF, na siga em inglês), um dos grupos armados que estavam se integrando a elas. Mas tudo ainda está muito incerto e inseguro por lá. São informações que ainda precisam ser levantadas.

Por que decidiu se voluntariar para esta missão da ONU?

Sou jornalista de formação e, em 2005, prestei concurso para o Exército Brasileiro. Venho de família de militares: meu pai e avós são militares, e minha mãe pesquisa a histórias das enfermeiras brasileiras que atuaram na Segunda Guerra Mundial. Eu sempre tive interesse em participar de uma missão internacional da ONU para conhecer outras realidades, outros cenários e representar o Brasil lá fora, levando um pouco da nossa cultura e também absorvendo a cultura de outros países.

Que reflexos pessoais esta missão lhe traz?

Essa experiência no Sudão nunca vai sair de mim. Houve um problema de desabastecimento no país e ficamos três meses sem energia elétrica. Tínhamos duas horas de energia pela manhã e duas à noite. E estávamos no meio do deserto, num calor de mais de 40 graus. Quando eu pensava em reclamar, olhava para o lado e via a situação dos moradores vizinhos, que nem gerador tinham. São questões que trazem resiliência e uma lição de humildade muito forte para mim.
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