Estação Méier, provavelmente nos anos 1940Acervo Manoel Marcos Monachesi
Publicado 15/05/2023 07:00
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Rio - O célebre escritor Lima Barreto (1881-1922), que morou em Todos os Santos, já dizia em uma crônica de 1921: "É o Méier o orgulho dos subúrbios e dos suburbanos. Tem confeitarias decentes, botequins frequentados; tem padarias que fabricam pães, estimados e procurados, tem dois cinemas (...); tem um circo-teatro, tosco, mas tem; tem casas de jogo patenteadas e garantidas pela virtude, nunca posta em dúvida, do Estado, e tem boêmios, um tanto de segunda mão; e outras perfeições urbanas, quer honestas, quer desonestas..." Mais de um século depois do texto, o bairro continua sendo um dos mais importantes da Zona Norte do Rio. Grande parte desta rica trajetória é retratada no recém-lançado livro "Um Grande Méier de Histórias: heranças, caminhos e lembranças dos subúrbios cariocas.

Idealizada pelo coletivo Engenhos de Histórias, a publicação reúne textos de historiadores, jornalistas, geógrafos, músicos, muitos deles moradores ou ex-moradores da região. A ideia era registrar um conjunto de olhares plurais sobre o Grande Méier.

O pesquisador e historiador Rafael Mattoso, de 42 anos, organizador do livro ao lado da historiadora Rachel Lima, afirma que o projeto é muito importante para incluir a história do subúrbio na narrativa da cidade do Rio. Segundo ele, é preciso que haja mais publicações sobre a região, para equilibrar os muitos registros já existentes sobre a Zona Sul.

"A cada cinco cariocas, quatro são suburbanos. Consiste em 80% da população que ocupa mais de 130 bairros da cidade. São 163 bairros no total. A Zona Norte tem 87 bairros, já a Zona Oeste tem 44. Como vamos deixar que 16 bairros da Zona Sul contem a história do Rio inteiro? É um momento importante para contarmos essa história. Uma história que não quer excluir e sim incluir. Precisamos trazer outros olhares, outras experiências e outras pessoas para produzirmos e publicarmos sobre o subúrbio cada vez mais", pondera Rafael.
O livro conta, ainda, com textos de grandes nomes da música brasileira, como os cantores e compositores Gisa e Didu Nogueira, irmã e sobrinho de João Nogueira (1941-2000), respectivamente. Ambos foram moradores do bairro.

Com o título "Vocês sabem, eu sou do Méier!", Didu narra recordações importantes de sua infância e adolescência no bairro, como o Clube do Samba, grupo criado, em 1979, por João Nogueira como polo de resistência da música popular brasileira, diante da febre das discotecas. O Clube do Samba promovia encontros na casa de João, outra cria do Méier, atraindo Beth Carvalho, Cartola, Chico Buarque, Paulo César Pinheiro, Clementina de Jesus, Clara Nunes e muitos outros nomes de peso.

A ligação de João Nogueira com o Méier era tão forte que, não à toa, escreveu o "Samba do Méier". "Méier sempre foi o maioral, é a capital dos subúrbios da Central", dizia a letra.

Já Gisa Nogueira ficou responsável pelo posfácio, intitulado "Memórias dos filhos do Méier". No texto, ela conta que chegou ao Méier quando nasceu, e que seu primeiro acalanto foi o som da viola de seu pai, João Batista Nogueira, que tocava em saraus com Pixinguinha e Jacob do Bandolim. Ela ainda lembra de festas juninas, escolas conceituadas e cinemas do bairro, entre eles o Imperator, à época, o maior da América Latina, na Rua Dias da Cruz.

O músico e compositor Cláudio Jorge também está na coletânea. Ex-morador do Cachambi, ele revela, entre outras curiosidades, que, apesar de ter viajado o mundo a trabalho e conhecido lugares incríveis, o orgulho suburbano sempre falará mais alto.
O rock é outro gênero musical com histórias consolidadas no Grande Méier e contadas na obra. Grupos famosos, como The Fevers, Golden Boys e Trio Esperança, estes últimos formados por irmãos da família Correa, são destaques no livro.

O texto da orelha da publicação é assinado por Vitor Almeida, conhecido pelo perfil "Suburbano da Depressão", no Instagram, cujo trisavô, Guilherme Paraense, primeiro medalhista de ouro olímpico do Brasil, morou no bairro.

"Estamos produzindo conhecimento do Grande Méier a partir das nossas memórias. O livro tem o objetivo de levantar os olhares sobre a região e possibilitar que cada um se sinta à vontade para interpretar, ressignificar e produzir a sua própria história a partir disso", afirma Rafael Mattoso.

Lançado pela Kliné Editora, a obra está à venda nas livrarias Folha Seca, no Centro, e na Belle Époque, no Méier.

Trajetória marcante

A história do Méier esmiuça o subúrbio do Rio como um todo. Ele foi a porta de entrada da Zona Norte para a cidade, o ponto de ligação do que era considerado rural e urbano no Rio. Entre o Engenho Novo e o Engenho de Dentro, o Méier era o final da cidade urbanizada e o início da "parte rural".

Por ser uma parte plana e elevada, recebeu muitos investimentos para a sua urbanização. A primeira estação da linha ferroviária do país, inaugurada por Dom Pedro II há 165 anos, foi a "Parada do Caxamby", onde hoje é ponte do Méier. Em 1889, esta parada mudou de nome para Central do Brasil.

"O Méier, como bairro, surge no final do século XIX. Como localidade é muito mais antigo. Duas famílias de famílias de comerciantes portugueses compraram as terras levadas em leilão pelo governo no século XVIII, após os jesuítas serem expulsos da região (eles tinham ganhado as terras da Coroa Portuguesa). Quando a sociedade entre os sócios se desfez, a Fazenda do Engenho Novo se fragmenta, ficando a parte que hoje está localizada o bairro do Méier com a filha de um dos sócios, a Dona Dulce de Castro Duque Estrada", detalha Rachel Lima.

A ocupação do Méier começou em volta do Jardim do Méier, ao lado da estação do trem. O jardim foi construído pela intendência municipal, em 1915, para dar um certo embelezamento ao local, na época da chamada "Belle Époque", quando o Brasil queria crescer como a Europa, se modernizar ao modo europeu.

O histórico coreto do jardim foi o primeiro em madeira no Rio de Janeiro. Logo após a sua inauguração, o primeiro quartel do Corpo de Bombeiros da cidade e o Hospital Municipal Salgado Filho foram construídos ao redor da área.

Feliz com o resultado da obra, Rafael Mattoso revela que ainda é necessário resgatar e contar mais a história da região. "O Méier tem grandes curiosidades que precisam ser conhecidas. Além da herança passada, também foi um lugar de modernidade, teve a primeira escada rolante e o primeiro shopping center do Brasil. Guarda herança que precisamos resgatar e contar, como o crescimento urbano e modernidade que teve com muita força a partir dos anos 1950. Se você não conhece a sua história, não se identifica com ela”, afirma.

Moradores enumeram qualidades e problemas

Oswaldo Assumpção, advogado e cientista social, mora no Méier desde que nasceu, há 41 anos, e frequentou muitos eventos culturais no Jardim do Méier. "Na minha infância, nos anos de 1980, lembro de ir em exposição do Exército e dos Bombeiros, entre outras que já não são mais realizadas. Infelizmente, hoje em dia, o lugar está pouquíssimo explorado, embora já tenha mostrado que tem um potencial cultural enorme, qualquer evento ou feira no Jardim do Méier lota", conta Oswaldo.

Oswaldo não apenas testemunhou de perto as mudanças do lugar, como também as estudou. Formado em Ciências Sociais, fez pesquisas na década de 2000 sobre o perfil socioeconômico da região. Segundo ele, o ponto positivo é o fato de o bairro ter muitos serviços acessíveis, como hospital público, postos de saúde, clínicas da família, hospitais privados, clínicas privadas, laboratórios e um comércio razoável.

O entorno do Estádio Nilton Santos, o Engenhão, também é um caso positivo. "Ali antes era uma região abandonada, escura e perigosa. Hoje é um local lotado por famílias, crianças brincando, jovens praticando esportes, pessoas comendo e bebendo nos food trucks. Um comércio foi criado ao redor, além de ter shows nos galpões ao lado, o que é bem legal", destaca, animado.

Ainda de acordo com Oswaldo, os problemas, no entanto, são muitos atualmente. "Sobre os pontos negativos, podemos ressaltar o abandono dos arredores do Hospital Salgado Filho, principalmente no que diz respeito a patrulhamento policial. E além de não ter policiamento, as ruas são mal cuidadas, com árvores e canteiros sem podas e com iluminação deficitária, o que colabora e muito para facilitar a ação de criminosos", diz. "Os bairros que compõem o Grande Méier são completamente abandonados pelo poder público, principalmente os mais pobres como Cachambi, Engenho Novo e Engenho de Dentro", completa.

A parte cultural também merece mais atenção, de acordo com o morador. "O Méier tinha uma cena cultural bem forte, com alguns museus, muitas salas de cinema e muitos shows, inclusive internacionais, no Centro Cultural João Nogueira, o Imperator. De fato, havia uma vida noturna bem movimentada, mas isso acabou completamente. Os cinemas acabaram e o Imperator está com um quê de deserto, pouquíssimo explorado, assim como o Jardim do Méier. Além disso, ao lado do estádio Nilton Santos existe o excelente Museu Ferroviário, que vive fechado", reclama.

A escritora de livros infantis Maíra Gomes, 37, também cita a falta de segurança como algo que deve ser melhorado. "É um lugar cheio de problemas do ponto de vista da segurança. Minha rua é paralela ao fórum, ao Corpo de Bombeiros, à delegacia e batalhão de polícia. Deveria ser a rua mais segura do mundo, mas não é, infelizmente", lamenta.

Para Maíra, o bairro mantém uma proximidade com seus moradores que é típica de lugar pequeno. "O que eu mais gosto do Méier é o sentimento de vila. Todo mundo conhece todo mundo, muitos dos meus vizinhos me viram crescer e sempre perguntam pelos meus pais, que não moram mais no bairro. Fiquei fora do Méier durante a adolescência e no início da minha vida adulta. Quando retornei, já era mãe. Em seis meses de bairro meu filho já tinha apelido no açougue e conhecia todo mundo", diverte-se a escritora, que pede: "O Méier merecia um olhar mais carinhoso no aspecto da segurança, por sua história e tradição."
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