Publicado 15/05/2023 06:00
Rio - Você já teve contato com um instrumento feito à mão? À primeira vista, um violão de cordas de aço produzido em uma fábrica, por exemplo, pode não diferir muito esteticamente de um feito por um luthier, profissional que constrói instrumentos de forma artesanal. Porém, ao menor dedilhar de suas cordas, o som revela singularidades, características personalizadas. Por personalizadas, leia-se: feitas sob medida, baseadas nas necessidades do músico e na sonoridade que ele busca, o que torna o instrumento único e especial.
Identificar precisões e transmiti-las tecnicamente para a peça é apenas um dos trabalhos minuciosos da lutheria. Mas para o luthier Giorgio Benedettini, de 47 anos, do ateliê 2luthiers, este é o grande diferencial da arte.
"Há uma grande diferença entre o processo industrial e o processo artesanal de produção de um instrumento. A questão do processo industrial é que o fabricante está sempre preocupado em manter e seguir um determinado padrão. Na lutheria, utilizando-se a mesma máquina empregada na indústria é possível criar algo com foco individual. Um trabalho em conformidade com o trabalho do músico. Os focos do instrumento industrial e artesanal são diferentes. Na lutheria, o profissional trabalha na peça do começo ao fim. Mesmo usando alta tecnologia, o luthier está ali tomando conta de todo o processo", explicou Giorgio.
A palavra 'luthier' vem do francês 'luth', que significa alaúde. No surgimento da técnica milenar, o profissional era apenas construtor de alaúdes e, depois, se tornou construtor de instrumentos de corda. Hoje em dia, todos os construtores de instrumentos musicais são chamados de luthiers.
O repertório é o ponto de partida dos luthiers na personalização dos instrumentos. O som de instrumentos acústicos, que é o som natural (sem nada de elétrico), é alterado por qualquer intervenção feita, seja pela espécie e espessura de madeira ou pelo tipo de estrutura definido para o instrumento. Qualquer escolha e atividade realizadas influenciam no timbre final. Um músico de jazz, por exemplo, deseja um som mais arredondado e cheio, e a textura da madeira deve proporcionar essa qualidade. A partir do material escolhido, pensa-se a arquitetura e, então, a engenharia de construção que será utilizada, pois a arquitetura do instrumento muda a forma como ele vibra e, assim, propaga o som.
O músico Leandro Arent, de 43 anos, toca violão na noite carioca e é cliente de Giogio. Na sua opinião, o custo-benefício de ter um instrumento construído à mão, do zero, é compensador:
"Eu já tive vários violões comprados prontos, de fábrica, de marcas famosas e importadas, mas o custo-benefício para ter um instrumento de lutheria não se compara. Nenhum instrumento de fábrica vem do jeito que você gosta. Tendo a oportunidade de ter um instrumento feito para você, já se reúne na peça, junto com o profissional, as características que aprecia. Isso afeta diretamente a qualidade do trabalho que consigo entregar para o meu cliente, que é o público. Como passo muitas horas tocando, o violão customizado me dá um nível de conforto alto e faço menos esforço, fora que a qualidade do som é maior", contou. "O trabalho que ele faz aqui é muito específico e consegue me oferecer diferenciais que instrumentos feitos em fábrica não têm", concluiu.
Por ser um trabalho manual, a lutheria está visceralmente ligada à pessoa que a realiza. É difícil não adicionar experiências, gostos e preferências pessoais quando se constrói algo à mão. Cada luthier acaba tendo uma característica harmônica distinta, que é considerada a assinatura sonora, como se o artesão deixasse a sua marca pelo som.
"Isso aparece bastante nos instrumentos acústicos e pode variar durante a vida do luthier, conforme as fases laborais. Às vezes é bem nítido, com instrumento com grave se apresentando mais definido ou mais distribuído. Eu mesmo consigo perceber a diferença na minha construção de 10 anos para cá. Não tem como separar muito isso, é um trabalho muito enraizado no seu criador", definiu Giorgio.
Rogério Ramos dos Santos, de 54 anos, luthier desde os 16, compartilha do mesmo pensamento. "Características do trabalho do luthier têm a ver com a escola dele, com o que aprendeu e também com a experiência. Isso é o que o profissional coloca na sua maneira de trabalhar, o que imprime de si mesmo, de dentro para fora. Ele faz de acordo com o que entende ser o instrumento na sua resposta sonora e facilidade de tocar. O que manda é a individualidade de cada profissional para fazer um instrumento aceitável que corresponda na qualidade e compatibilidade e caia no gosto do músico", afirmou o profissional, que teve como professor Sérgio Abreu (1948-2023), um dos maiores violonistas brasileiros na música erudita.
Há profissionais que vão mais fundo no processo autoral e investem na beleza estética. O luthier Fernando Bernardo, de 53 anos, com estúdio na Tijuca, tem modelos específicos de instrumentos, criados a partir de seu entusiasmo pelo Rio de Janeiro. Ele dispõe dos modelos de violão 'Corcovado', que é uma homenagem à beleza do Rio, feito quando não morava na cidade, 'Gávea', do tipo chamado violão de palco, 'Baixo Gávea', um modelo que entrega um som mais descontraído, 'Joá', peça sem peso, e 'Arpoador', que tem uma ambiência mais intimista. De cavaco, oa modelos 'Tijuca' e 'Gamboa'.
Na lista dos luthiers que ousam em seu trabalho está Valdeir Feitosa Barreto, de 62 anos, que cria cuícas em seu ateliê no bairro Campinho, na Zona Norte, fazendo peça por peça do instrumento. Uma de suas cuícas anda famosa por ser feita de barril da cerveja holandesa Heineken.
Valdeir recicla barril para esta cuíca, que não é profissional, lembra ele. "É só para brincar, levar para o bloco, já que ela é super leve", destacou. A cantora e percussionista Mart'nália pediu uma cuíca feita com barril, mas quis toda branca, sem a marca da cerveja. Já Macaco Branco, diretor de bateria da escola de samba Unidos de Vila Isabel, é fã e publica vários vídeos com o instrumento.
Barreto enfatiza que a construção manual de cuíca é lenta e trabalhosa, mas vale a pena quando vê as suas criações pelo mundo. "Eu gosto muito, no trabalho que eu faço, é quando vejo as minhas cuícas na avenida, numa roda de samba, fora do país. Este ano a Viradouro ganhou troféu pela ala das cuícas e 70% dos instrumentos eram meus. Isso é muito gratificante".
Enquanto para a lutheria de instrumentos de corda o profissional precisa de conhecimentos de marcenaria e música, na lutheria de instrumentos de percussão é necessário também ter noções específicas de tornearia e mecânica. O luthier de baterias Fabiano Cunha Ribeiro, de 40 anos, cujo ateliê fica na Fábrica Bhering, no Santo Cristo, região Central, contou que "no caso do luthier de bateria são necessárias muita pesquisa e muita dedicação. Na bateria, é preciso ter uma base muito boa de marcenaria, de tornearia e um pouco de mecânica também porque nosso instrumento tem materiais muito diferentes. São tambores, pratos e ferragens, três universos distintos no mesmo instrumento", explicou ele, formado também em Artes Plásticas.
Como é um trabalho difícil, Fabiano deixou de fazer baterias completas e agora concentra a produção em caixas: "É uma profissão difícil. É uma responsabilidade muito grande ter o instrumento de trabalho de um músico na mão. Não é como consertar uma geladeira. Cada instrumento é único. Muitos têm mais de 40 anos de história. E o mercado é pequeno também. Mas eu adoro. Para mim é muito prazeroso. Hoje eu atendo todos os meus ídolos. Os músicos que eu só conhecia pelas revistas que lia na adolescência, no Acre, hoje confiam seus instrumentos aos meus cuidados. Isso é o maior reconhecimento que posso ter", confidenciou Fabiano.
Como é um trabalho difícil, Fabiano deixou de fazer baterias completas e agora concentra a produção em caixas: "É uma profissão difícil. É uma responsabilidade muito grande ter o instrumento de trabalho de um músico na mão. Não é como consertar uma geladeira. Cada instrumento é único. Muitos têm mais de 40 anos de história. E o mercado é pequeno também. Mas eu adoro. Para mim é muito prazeroso. Hoje eu atendo todos os meus ídolos. Os músicos que eu só conhecia pelas revistas que lia na adolescência, no Acre, hoje confiam seus instrumentos aos meus cuidados. Isso é o maior reconhecimento que posso ter", confidenciou Fabiano.
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