Publicado 29/05/2023 06:00 | Atualizado 04/06/2023 08:06
Rio - Um problema de saúde pública uniu a Prefeitura de Volta Redonda e o Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) num esforço de criar estratégias para enfrentá-lo. São os casos de autolesão em jovens da rede pública de ensino, identificados e encaminhados pela Secretaria de Educação à clínica-escola da UFF, que fica na cidade, e deu início a um estudo para identificar as causas de eventos em que alunos provocam cortes no próprio corpo para dar vazão a um sofrimento psíquico.
O "Estudo sobre a estruturação do ego e da personalidade de adolescentes que se automutilam" analisou casos de 61 alunos entre 10 e 16 anos. E constatou que 83% deles estão relacionados a conflitos familiares, especialmente em ambientes domésticos.
"São situações em que a criança está exposta a vulnerabilidades sociais e psíquicas e vivenciam a violência direta, física, sexual, psicológica, ou indireta, quando presenciam episódios de violência entre os pais. A criança pode reagir de forma comportamental, tentando impedir uma briga, por exemplo, ou desenvolver um quadro psicopatológico como o da autolesão", explica o professor da UFF e doutor em Psicologia Clínica, Antônio Augusto Pinto Junior, que coordena o estudo, que é financiado pela Faperj.
Segundo o professor, a autolesão é um evento que está associado a características da sociedade contemporânea, onde o espaço destinado à escuta do outro é prejudicado por comportamentos predominantemente egoístas e autocentrados:
"Não é um problema de Volta Redonda. É da sociedade contemporânea como um todo, que diz respeito à forma como nos relacionamos hoje em dia, que é narcisista, egoísta, autocentrada. As pessoas estão perdendo a capacidade de estarem abertas umas às outras. Então, nessa dinâmica, esse jovem não consegue expor, colocar para o outro o que está sentindo, dar vazão a essa angústia. A forma que encontra é a autolesão".
"Não é um problema de Volta Redonda. É da sociedade contemporânea como um todo, que diz respeito à forma como nos relacionamos hoje em dia, que é narcisista, egoísta, autocentrada. As pessoas estão perdendo a capacidade de estarem abertas umas às outras. Então, nessa dinâmica, esse jovem não consegue expor, colocar para o outro o que está sentindo, dar vazão a essa angústia. A forma que encontra é a autolesão".
O mecanismo psíquico que leva ao ato de ferir o próprio corpo, explica o professor, está relacionado ao fato de o jovem se culpar pelo sofrimento sofrido:
"É muito comum a vítima se sentir culpada pela agressão vivida. Por exemplo, sofre espancamento dos pais porque merece. Em casos de violência sexual sabemos que existe aquela percepção de que a vítima sofreu o abuso devido à forma de se comportar, à roupa que usa. A sociedade valida isso. Nesse tipo de abuso, aí é que o espaço de escuta é anulado mesmo, pois a vítima sofre ameaças para não relatar o que passou. Há um complô de silêncio nesses casos. É necessário que essas vítimas percebam que não são culpadas pelo sofrimento vivido".
No caso de violência entre os pais, explica o professor, o medo da criança é de ser a próxima vítima.
Maioria de casos são em jovens do sexo feminino
Os casos analisados no estudo acometem, na maioria das vezes, 80%, crianças e adolescentes do sexo feminino. Isso porque, segundo o professor Antônio Augusto, a autolesão está ligada a quadros depressivos, mais propensos a esse gênero:
"Diversas pesquisas internacionais mostram que as pessoas do sexo feminino têm uma tendência maior a um comportamento internalizante, depressivo. Já o homem costuma externar mais facilmente o que está sendo".
Sinais que ajudam a identificar os casos
Um outro dado relevante do estudo é que em 50.8% dos casos a vítima de autolesão não foi encaminhada para nenhum serviço de saúde mental. E os casos, em sua grande maioria, foram identificados no ambiente escolar.
Segundo o professor Antônio Augusto, há indicativos que podem ajudar a identificar os casos de autolesão: isolamento social, quando o jovem não se relaciona com os outros de maneira saudável, não busca contato afetivo e social; uso de mangas compridas em dias de calor, já que os braços e pulsos e mãos são as partes mais atingidas, em 94,1% dos casos; ida com frequência ao banheiro e permanência no local por longo tempo; e a presença de facas, giletes ou lâminas de apontados nos pertences do aluno: "Se forem diversos cortes em diferentes estágios de cicatrização é muito provável que este jovem esteja se autolesionando".
Oficinas terapêuticas
Após a realização do estudo, que está em fase final de conclusão, o Departamento de Psicologia da UFF e a Prefeitura de Volta Redonda pretendem implantar iniciativas para combater o problema. Uma das ações que estão sendo estudadas são as oficinas terapêuticas que, no contraturno escolar, vão ajudar os jovens a expor o que estão sentindo.
"Estamos pensando em um ambiente acolhedor para que o jovem possa expressar, por meio de grafismos e da arte em geral, questões que não conseguem expor em palavras. Também estamos desenvolvendo capacitações que devem atingir, não somente o ambiente escolar, mas os espaços das unidades públicas de saúde e de assistência social. É importante que saibamos identificar os casos de autolesão. Precisamos sempre chegar antes", disse.
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