Publicado 28/05/2023 15:08 | Atualizado 29/05/2023 14:21
Rio - O projeto Negro Muro inaugurou, nesta sexta-feira (26), um mural em homenagem ao cantor e compositor Luiz Melodia, que morreu aos 66 anos, em 2017. A obra fica próximo ao Morro de São Carlos, no bairro do Estácio, Zona Central do Rio, onde o músico morou.
"Eu passo por esse muro há muitos anos, quase diariamente, e sempre olho para ele pensando 'aqui caberia um Ismael Silva, um Melodia'. Teve um belo dia que eu tomei coragem, bati na porta do proprietário e ele aceitou. Fui conversar com o Cazé sobre o que seria mais interessante para a gente pintar ali. O Ismael já tem uma estátua, muitas homenagens, que nunca vão ser suficientes, mas acho que o Melodia é uma figura pouco lembrada pela importância que tem. Pouco reverenciado pelo tamanho que ele tem para a música brasileira. Além disso, ele é um cara que canta o Estácio nas suas músicas", disse o produtor e pesquisador do projeto, Pedro Rajão, ao DIA.
Além da beleza, a pintura produzida pelo artista urbano Cazé impressiona pelas diversas referências sobre a vida e obra de Luiz Melodia. Os feijões simbolizam a capa de "Pérola Negra", primeiro álbum do cantor, lançado em 1973. Já o "Mico de Circo" é representado pelo artista em cima de cavalo, forma que ele lançou o disco em 1978, em Salvador.
"Ele era um cara muito contra as gravadoras, contra essa forma quadrada tanto de produzir a música quanto lançamentos, que são eventos caretas com um monte de gente careta em lugares caretas. Então, ele faz o lançamento em uma rua de Salvador, montado em um cavalo, e faz um almoço, um caruru com mais de três mil quiabos. Ele fez tipo um cortejo de cavalo na rua e um almoço para as pessoas na rua. Isso para lançar um disco nos anos 70. Essa história demonstra a genialidade, a rebeldia e a generosidade dele", contou Rajão.
Os pais do cantor também estão presentes. O violão de quatro cordas do sambista Oswaldo Melodia e a placa da rua que leva seu nome no Morro de São Carlos são alguns dos elemento do mural, assim como a figura de Eurídice, importante costureira da comunidade e mãe do homenageado.
"A ideia do projeto foi baseada na vida dele no Estácio. Então, temos um Luiz Melodia, Negro Gato, muito focado na vida dele no Estácio. Por isso também tem a frase 'Estácio eu e você', que ele diz em uma entrevista na qual ele pede para ninguém nunca matar ele no Estácio. Mas a gente não mata, a gente eterniza de uma maneira bonita e singela em uma das esquinas bem intensas do Estácio, tentando, de alguma forma, ressignificar aquele Estácio esquecido, que é berço do samba, da poesia, da negritude. Temos o Luiz Melodia olhando para o Estácio, os feijões que representam muito bem o sentido de Pérola Negra, ainda mais no momento de grande fome que vivemos no Brasil, infelizmente", disse Cazé, ao DIA, sobre a obra.
"Também tem ele naquele 'lifestyle', digamos assim, que representa a vivência que ele teve com a mãe dele, que era costureira. Então, ele se torna referência de moda black na década de 80, muito por conta dessa relação com a mãe. Embaixo, tem a base da família, que é a mãe dele, ali como costureira. A paixão pelo Vasco, que ele herda do pai, e o violão de quatro cordas, dividindo moda e música", concluiu o artista.
"Passar no Estácio e contemplar essa obra de arte é viver um mundo de emoções. Em nome da nossa família, é uma eterna gratidão a esse projeto, que com tanta sensibilidade retratam essa tela, que se refere a esse gênio da Música Popular Brasileira. (...) É uma tela que vai tocar no coração de muita gente, vai trazer memórias. Luiz Melodia para sempre entre nós”, comemora Vânia Fernandes, irmã de Luiz Melodia.
Em post nas redes sociais, o projeto também ressalta que a arte foi produzida na mesma rua onde a vereadora Marielle Franco foi assassinada, em 2018. "Na rua que guarda a memória tão triste da morte de Marielle, surge mais um rosto negro como contraponto de celebração da vida. A vida de Melodia, de Marielle e de todo o povo preto brasileiro", publicou o perfil.
Projeto Negro Muro
"O que diferencia o Negro Muro de outros projetos artísticos é fazer essa conexão do território e as história que a gente conta através do muro. Pequenas anedotas que a arte tenta trazer para quem está olhando", afirmou Pedro sobre o projeto. São nessas histórias que figuras importantes da cultura negra são eternizadas em 48 muros do Rio.
Com cinco anos de projeto, a proposta é transformar as ruas da cidade em uma grande galeria de arte a céu aberto com o objetivo de trazer representatividade e resistência aos homens e mulheres negros e negras que fazem parte da nossa história, cultura e memória.
Entre as figuras já homenageadas, estão Paulinho da Viola, em Botafogo; Luiz Gonzaga, no Cachambi; Martinho da Vila, em Vila Isabel; João Candido, em São João de Meriti, e Waldemar Santana, na Lapa.
"Muito gratificante ver onde foi parar um projeto que começou pequeno, sem nenhum dinheiro, só na raça... O grafite é isso também. É a cultura do escasso, uma arte rebelde. Hoje, o que fazemos é muralismo", explicou o pesquisador.
O trabalho da dupla também vai além das obras. Rajão e Cazé também dão palestras em salas de aula, falando sobre as figuras pintadas e o processo de pesquisa. Atualmente, oito muros enfeitam livros didáticos de colégios por todo o Brasil. Além disso, o Negro Muro produziu uma série para a plataforma Globoplay, entrevistando personalidades como Conceição Evaristo, Haroldo Costa, Alcione e Maria Betânia.
Nos últimos dois anos, as pesquisas de Pedro também tem objetivo de sinalizar imóveis históricos. Ele propôs junto ao Instituto Rio Patrimônio da Humanidade para que oito endereços recebam uma placa e um verbete sobre a história do lugar, como a casa onde morou Clementina de Jesus, no Engenho Novo, e a quadra da escola de samba G.R.A.N.E.S Quilombo, fundada por Candeia, em Acari.
Reportagem do estagiário Fred Vidal, sob supervisão de Flávio Almeida
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