Publicado 25/06/2023 06:00 | Atualizado 26/06/2023 10:36
Rio - Aninhado entre os bairros Abolição, Encantado e Quintino Bocaiúva, Piedade, na Zona Norte, tem feito sucesso em 'Vai na Fé', novela das 19h da Rede Globo, que apresenta uma família de três gerações dividindo uma casa no bairro do subúrbio. A aparição nas telinhas tem sido motivo de orgulho para moradores e ex-moradores do local, por trazer de volta à memória dos cariocas os encantos do lugar que perdeu visibilidade e circulação nos últimos anos após o fechamento da Universidade Gama Filho.
Piedade chama a atenção por suas tradições típicas de subúrbio preservadas até os dias de hoje, além de abrigar lugares icônicos como a Capela Nossa Senhora da Piedade, tombada pelo Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH), o River Futebol Clube, onde Zico jogou e ganhou visibilidade, antes de ser contratado pelo Flamengo, e o campus da antiga Universidade Gama Filho, a primeira universidade do subúrbio, que chegou a ser uma das mais renomadas instituições de ensino superior privadas, e teve a maior faculdade de medicina do país.
Após o fechamento da instituição, em 2014, que tinha um comércio forte nos arredores e levava muitas pessoas à Piedade diariamente, o bairro viu o seu movimento cair nas ruas. Agora, sendo mencionado na televisão, os moradores acreditam que Piedade voltará a ser lembrado.
"A novela citar o clube e o bairro é interessante, pois depois do fim da Gama Filho o bairro ficou esquecido e abandonado. Mas é um bairro bom pelas tradições do clube e do Carnaval, pelo lado recreativo e social. Está merecendo atenção na área de segurança e urbanização, com a limpeza das ruas. Mas principalmente a segurança", diz o vice-presidente do River, Paulo Henrique Gonzaga, de 28 anos, após contar com orgulho que Zico foi "descoberto" no clube pelo jornalista e locutor esportivo Celso Garcia antes de ser contratado pelo Flamengo.
Leonardo Bessa, de 47 anos, cantor das escolas de samba Renascer de Jacarepaguá e Paraíso do Tuiuti, mora no bairro há mais de dez, e diz que não troca Piedade por nenhum outro lugar do Rio. Ele vê com grande importância o subúrbio estar no núcleo principal do folhetim: "É de extrema relevância, porque reporta uma determinada região da cidade, já que muitas novelas se passam na Zona Sul. Ter uma que mostra o subúrbio, uma atmosfera diferente, gera identificação com mais pessoas da cidade. É muito legal mostrar os hábitos dos suburbanos. A mesma coisa com a série Encantado’s (do Globoplay), que é ambientada no bairro Encantado, e tem muito sobre Carnaval. Elas são como crônicas do nosso dia-a-dia. É muito legal mostrar para o Brasil inteiro como são as coisas aqui em Piedade e adjacências", diz o também produtor musical.
Leonardo é empolgado com o cotidiano que vive no bairro da Piedade. "Piedade tem a alma do subúrbio, as tradições, a musicalidade, e todas os rituais do barzinho, feira no fim de semana, churrasquinho, pagode, futebol, Carnaval, festa de São Cosme e São Damião e também no Dia de São Jorge. Sempre me identifiquei muito com isso. Dificilmente vou querer trocar Piedade por outro lugar. É um bairro que conserva muito as coisas da minha infância. Sempre gostei muito de preservar o passado, o dia a dia do subúrbio, do banho de mangueira, pipa, Carnaval de rua, blocos. O Clube River com pagodes fantásticos nos anos 80, de onde saíram muitos artistas do samba, compositores e grupos. É um lugar com muita história. Tem muita coisa bacana dessa região que não troco por nenhum lugar do Rio de Janeiro. É aqui que me encontro e me conecto com a minha história e gosto muito".
Sentimento de pertencimento e comunidade
O senso de comunidade é um ponto em comum do entusiasmo dos moradores pelo local. O empreendedor Raphael Vasconcelos, de 32 anos, mora na Piedade há oito e gosta da sensação de conexão e pertencimento que existe no bairro:
"Eu tenho parente que mora Recreio dos Bandeirantes, na Zona Oeste, e lá você não vai numa esquina e encontra um conhecido ou amigos. Você vai aqui no Tramelinha (bar tradicional da Piedade) em qualquer dia que estiver aberto e você vai encontrar um conhecido, vai sentar, bater um papo. É um senso de união incrível, as pessoas não ficam isolados em sua casa", comenta.
Situações semelhantes acontecem também entre pessoas que não se conhecem. No Armazém Montinho, por exemplo, bar fundado em 1965, Jeferson Renato, representante comercial de 45 anos, estava sentado em uma mesa quando uma pessoa desconhecida, carregando um notebook, se acomodou na outra cadeira da mesma mesa e começou a trabalhar. Jeferson gostou da atitude, segundo ele típica de Piedade: "Todo mundo fala com todo mundo, é aberto, receptivo. Não conheço essa pessoa, por exemplo, e ela foi e sentou aqui na minha mesa, está fazendo o home office dela. Tem muito essa união que não tem na Zona Sul e na Barra da Tijuca. Aqui tem muita festinha de rua, antigamente tinha festa junina da Rua Ferreira de Sampaio, com barraquinhas, brincadeiras. Todo mundo do bairro frequentava. Ninguém passa despercebido aqui, isso é positivo. Se acontece alguma coisa, todo mundo sabe onde a pessoa mora e conhece a sua família", diz.
Segundo Jeferson, a menção de Piedade em 'Vai na Fé' é importante para dar ao bairro a notoriedade que ele merece: "Aqui tem muita história que não é contada. A Zona Norte é muito esquecida por causa da violência. Acho interessante, válido, valoroso enaltecer o bairro e mostrar para o Brasil e vários países que existe um bairro chamado Piedade".
Raphael concorda que a novela ser ambientada em Piedade é fundamental para valorizar a região: "Não apenas Piedade, mas toda Zona Norte é muito criticada por conta da violência. É bom para as pessoas terem uma noção que aqui não tem só criminalidade. Isso tem em todos os bairros, na Zona Sul, na Zona Oeste. O que acontece é que, infelizmente, na Zona Sul e na Zona Oeste, dependendo da área da Barra da Tijuca e do Recreio dos Bandeirantes, tem um pouquinho mais de segurança por conta das pessoas que moram ali. Aqui tem descaso, mas o povo é unido. A novela mencionar Piedade vai honrar a área, o que é ótimo", pontua.
Além do senso de comunidade, as tradições suburbanas são muito apreciadas na Piedade. O bairro é conhecido pelo grande número de pipeiros, mas moradores de outros lugares também vão até lá para empinar pipa, e o céu fica cheio delas mesmo em um dia de semana comum. Rodrigo Pereira, de 40 anos, por exemplo, mora em Bonsucesso e foi à Piedade, na tarde da última quarta-feira (21), só para se divertir com a brincadeira. Em uma curta caminhada pelas ruas Coronel de Almeida, Teresa Cavalcanti e João Pinheiro, que se cruzam, é possível encontrar grupos de pessoas e pessoas sozinhas, de várias idades, fazendo pipa voar.
Na lista de Leonardo de tudo o que ama no bairro, as pipas no ar são um dos motivos: "Vivo isso aqui intensamente. Gosto de voltar de viagem, ficar na minha varanda vendo o bairro, ver as pipas no alto, os pagodes, churrasco nos fins de semana, a 'pelada' dos vizinhos. São coisas que vivencio no meu dia a dia. Sou muito feliz aqui em Piedade. É um bairro pelo qual tenho maior carinho e vou guardar para sempre no meu coração", conta emocionado.
Entre os lugares marcantes, há dois bares que estão na mente de todos: Tramela e Tramelinha. O primeiro era o mais antigo, mas não existe mais. Porém, o Tramelinha, fundado em 1992, continua no mesmo lugar e com clientela fiel.
Márcio Ferreira, de 34 anos, garçom que trabalha há 14 no estabelecimento, abre um sorriso para falar de Piedade e do bar que fez história na região. "Isso aqui (Piedade) é bom para caramba. Tem a praticidade do comércio, mercado, tudo próximo um do outro. O Tramelinha foi o meu primeiro emprego, consegui assim que cheguei do Ceará, meu estado natal, e sou muito feliz aqui", conta.
O antigo bar fica na Rua Teresa Cavalcanti, onde tem feira de rua aos sábados, e acaba sendo o ponto de encontro de amigos, famílias e namorados do bairro depois das compras. Nestes dias, o comércio frita pasteis de camarão e siri sem parar, principal atração do lugar.
Piedade é um bairro residencial e costuma ser pouco agitado, com exceção do período de Carnaval. A festa de rua animada é assunto de exaltação entre os moradores.
Leonardo se empolga com este Carnaval típico do subúrbio que toma a vizinhança: "Tem blocos de rua que desfilam pelo bairro, é um monte de festa, com pessoas das sacadas dos prédios, das portas de casa vendo os blocos passarem. E não são blocos sujos, isso é algo marcante", elogia.
Para Paulo Henrique, o Carnaval da Piedade é o melhor: "Gosto muito dos blocos daqui, tem o Turma da Tramela, o Chega Mais, o Xodó da Piedade. São blocos diferentes da Zona Sul, raiz, mais tradicional, com banda, marchinha, sem trio elétrico", afirma.
Luiz Cláudio dos Santos, mais conhecido como Claudinho Portela por ser membro da comissão de Carnaval da agremiação, não mora no bairro desde a adolescência, mas volta com frequência para encontrar os amigos e conta que o Carnaval da Piedade sempre é lembrado por ele nestas ocasiões: "Sempre estou lá para visitar os amigos e jogar futebol, pois gosto muito do bairro. É um bairro ligado à família, a maioria dos moradores criou os filhos lá e hoje cria os netos. Joguei futsal pelo Piedade Tênis Clube, na Rua Torres de Oliveira, onde tinham as matinês de carnaval para as crianças, eu ia sempre. Tinha também Carnaval de rua, as crianças brincando fantasiadas, maior barato", comenta. Sobre a novela 'Vai na Fé' ser ambientada na região, ele diz que vê como um ponto positivo para o bairro em todos os sentidos.
Luiz Cláudio dos Santos, mais conhecido como Claudinho Portela por ser membro da comissão de Carnaval da agremiação, não mora no bairro desde a adolescência, mas volta com frequência para encontrar os amigos e conta que o Carnaval da Piedade sempre é lembrado por ele nestas ocasiões: "Sempre estou lá para visitar os amigos e jogar futebol, pois gosto muito do bairro. É um bairro ligado à família, a maioria dos moradores criou os filhos lá e hoje cria os netos. Joguei futsal pelo Piedade Tênis Clube, na Rua Torres de Oliveira, onde tinham as matinês de carnaval para as crianças, eu ia sempre. Tinha também Carnaval de rua, as crianças brincando fantasiadas, maior barato", comenta. Sobre a novela 'Vai na Fé' ser ambientada na região, ele diz que vê como um ponto positivo para o bairro em todos os sentidos.
Caio Alexandre, de 38 anos, dono de uma barbearia em frente ao Armazém Montinho, afirma que "muita gente nem conhece o bairro, nem sabe onde fica. A importância de ser visto, lembrado, mesmo sendo por uma novela, será uma referência para os moradores".
A mesma opinião é compartilhada por Vânia Alves, de 35 anos, que trabalha com segurança e mora em Piedade há mais de 20 anos: "Acho maravilhoso o bairro ser citado na dramaturgia, porque mostra mais um pouco de Piedade, que estava esquecido depois do encerramento da Universidade Gama Filho. E mostra também a rica cultura da região", pondera.
Bairro na literatura
Além da televisão, o lugar também está na literatura. O escritor e jornalista Fernando Molica nasceu e cresceu no bairro da Piedade. Com ótimas lembranças do lugar, o finalista do Prêmio Jabuti por duas vezes ambienta muitas de suas histórias no bairro do subúrbio. Seu livro mais recente, 'Elefantes nos céus da Piedade', narra o início da derrocada de uma família suburbana no início dos anos 1970.
"Para mim, é triste associar Piedade à violência. Desde que nasci, em 1961, e até meus 15 anos morei em Piedade, estudei no Colégio Guarani, na Abolição, e, depois, no Colégio Piedade. Meus pais eram sócios do River, fui a muitos bailes de Carnaval lá. Era um bairro bem tranquilo, dava para jogar bola na rua, as casas não tinham muros tão altos. Ao longo dos anos, o abandono dos subúrbios pelo poder público colaborou muito para a violência, são bairros que são cortados pela linha do trem, o que facilita o acesso ao Centro. O fim da Gama Filho também foi trágico.
Piedade tem papel fundamental nos meus livros, minhas maiores referências de vida estão lá. Além do 'Elefantes', tenho um livro infanto-juvenil ('O misterioso craque da Vila Belmira') todo passado em Piedade, na Rua Belmira. No romance 'O inventário de Julio Reis' cito meu avô, Frederico, filho de JR (este, um compositor). Meus avós moraram numa vila na Rua Belmira. Em pelo menos dois outros romances que escrevi há personagens que moram em Piedade. A crônica que escrevi para o livro 'O meu lugar' é sobre... Piedade. Em julho, vou lançar 'Náufragos', que tem um conto em que o protagonista cita Piedade o tempo inteiro. Piedade é, sem dúvida, minha grande referência, inclusive como escritor. Moro na Zona Sul há bastante tempo, mas não me reconheço por aqui como me reconheço por lá", diz o escritor.
Novo respiro
Outro motivo de contentamento de Vânia é o futuro Parque Piedade, área de lazer nos moldes do Parque Madureira, que revitalizará a área da extinta Gama Filho. "Estamos animados com a obra do Parque Piedade, para reviver o nosso bairro. Ele era animado, tinha muitos comércios, faculdade, escola, hospital e boates. Hoje em dia o bairro, nesse lado onde era a Gama Filho, encontra-se abandonado. Mercados, comércios fechados, faculdade e escolas fechadas. O hospital também não atende ao bairro, somente cirurgias indicadas pelo SUS (Sistema Único de Saúde) de outras unidades. A melhor parte de Piedade era o funcionamento da faculdade. Na época, era um bairro animado, com comércio farto e policiamento. Sinto muita falta disso. O Parque Piedade vai ajudar" afirma, esperançosa.
O plano de recuperação de prédios e instalações abandonadas da instituição de ensino para a construção do Parque Piedade já foi iniciado pela subprefeitura da Zona Norte e o Fecomércio RJ. O projeto prevê ações no campo cultural, como a construção de um teatro, de uma biblioteca e de uma galeria de arte, assim como a criação de uma área molhada infantil, de convivência e serviços, espaços de lazer para crianças e cães, academia da terceira idade, horta urbana, campo de futebol e pista de skate.
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