Os poetas Severino Honorato, Marlos de Herval, Manoel de Santa Maria, Almir Gusmão, Adelino Ferreira e a Madrinha Mena, na Academia Brasileira de Literatura de CordelPedro Ivo / Agência O Dia
Publicado 25/09/2023 06:00 | Atualizado 25/09/2023 08:04
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Rio – A Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC), com sede em Santa Teresa, na região central do Rio, completa 35 anos neste mês mostrando que o gênero está vivíssimo. O objetivo é retirar essa tradição nordestina de um lugar periférico e colocá-lo no patamar do chamado cânone literário.
Com a missão de valorizar e preservar a memória da estética literária, a Academia trabalha para promover a reflexão e a formação de novos leitores. Além de reunir, no Brasil, os expoentes da literatura de cordel e investir no resgate e manutenção desta manifestação cultural, a instituição publica folhetos de diversos autores e livros como o Dicionário Brasileiro de Literatura de Cordel, e implementa pelo país afora as "cordeltecas", como são chamadas as bibliotecas de cordel.
Narrativa contada em versos, com ritmo, rimas, métricas definidas e repleto de elementos da cultura regional, o cordel, diferente do que muitos pensam, não é um gênero criado no Brasil. Ele chegou ao país com os portugueses, na época do descobrimento, aportando primeiramente na Bahia, por onde os estrangeiros tomaram o Brasil. Foi Salvador a primeira cidade a conhecer a beleza rítmica das estrofes do cordel. Na época dos povos conquistadores greco-romanos, fenícios, cartagineses e saxões, a literatura de cordel já existia, tendo chegado à Península Ibérica, constituída por Portugal e Espanha, por volta de século XVI. Mundus Novus, uma espécie de folheto de cordel escrito em latim e datado entre 1503 e 1504, foi, inclusive, a publicação que noticiou as descobertas de novas terras. Na Espanha, a literatura de cordel recebeu o nome de "pliegos sueltos" e, em Portugal, "folhas soltas" ou "volantes". "Cordel", aliás, vem de "cordão, guita, barbante" por, em Portugal, eles serem expostos pendurados.
Aqui, a técnica ganhou temática regional, retratando situações do cotidiano do povo nordestino. A literatura de cordel foi difundida para outros estados pela comunicação oral, já que ainda não havia a comunicação impressa no Brasil. E, então, a voz dos cantadores encheu o sertão de versos, que ajustavam as histórias à música de suas violas.
Mais tarde, o cordel passou a correr o Nordeste na mala dos homens conhecidos como folheteiros, que percorriam de povoado a povoado vendendo poesia. Foi nesta época também, segundo Almir Gusmão, presidente da ABLC, que o cordel foi chamado de jornal do sertão nordestino. Como o povo humilde não tinha condições financeiras de embarcar em um trem, sair da comunidade do interior para ir comprar o jornal, e o jornal também não chegava até o sertão, as pessoas liam as notícias pelo cordel. Os cordelistas transformavam os acontecimentos em 32 ou mais estrofes, concedendo à publicação a função especial de narrar os episódios da região, país e até mesmo do mundo.
E as histórias das próprias redondezas também eram contadas nos folhetos, tendo enorme importância cultural e de inclusão social. Entre os pioneiros do cordel impresso no Nordeste estão Jose Galdino da Silva Duda, João Martins de Ataide, Francisco das Chagas Batista e Leandro Gomes de Barros, este último considerado o pai do gênero. Uma rua de sua cidade natal na Paraíba, Pombal, recebeu o seu nome. Quando começou a imprimir seus poemas, a publicação se chamava folheto. O verbete "cordel" veio depois, em 1881, após a publicação do dicionário contemporâneo de Caldas Valente, em Portugal. Seus poemas viraram clássicos e alguns chegaram a inspirar obras do dramaturgo e romancista Ariano Suassuna.
São vários os desdobramentos da literatura de cordel. No início, quando era apenas oral, ainda não havia uma forma estrutural para os poemas. Os primeiros repentistas, que são os poetas que improvisam, não se prendiam a métricas e nem a número de versos para compor as estrofes. Algumas ficavam muito longas, outras muito curtas. Porém, o interlocutor já respondia criando um poema que rimasse a última palavra do seu verso com a última palavra do verso declamado pelo poeta anterior, e a partir daí os poemas seguiam em ritmo acelerado, exigindo do repentista rapidez de raciocínio.
Com as métricas estabelecidas, as modalidades foram divididas em versos de quatro sílabas (estrofes de quatro versos de sete sílabas, os mais curtos conhecidos na literatura de cordel), versos de cinco sílabas, sextilhas (considerada a mais rica e a mais indicada para os poemas romanceados longos, principalmente com o segundo quarto e sexto versos rimando entre si), setilhas (estrofes de sete versos de sete sílabas), oitavas ou oito pés de quadrão (estrofes de oito versos de sete sílabas), décimas (dez versos de sete sílabas e a mais usada pelos petas de bancada e repentistas), martelo agalopado (estrofes de dez versos de dez sílabas), galope à beira-mar (versos de onze sílabas), meia quadra (versos de quinze sílabas) e versos alexandrinos (os mais longos na literatura de cordel e mais incomuns. São estrofes acima de dez linhas, sem limite de versos). E ainda tem o sistema de rima chamado XAXAXA, exclusiva da literatura de cordel. Com ela, são estrofes de seis ou de oito versos em que se rima apenas os pares.
Os cordéis são padronizados em brochuras medindo cerca de 11 X 15 cm e com 8, 16, 32, 48 ou 64 páginas. O considerado “cordel básico” é o com oito páginas, tendo que conter 32 estrofes em sextilhas, setilha ou oitava. Se o poeta usar a métrica décima, o cordel deve ter 16 estrofes, cabem duas estrofes em cada página. Se o cordelista usar sextilha ou setilha, cabem quatro estrofes em cada página. As obras a partir de 16 páginas já são chamadas de romance, aumenta o número de estrofes.
A questão da harmonia sonora é muito importante, e há uma explicação histórica para isso. No início do século XX, quando a literatura de cordel se consolidou como uma literatura própria, os poetas desenvolveram um modo particular de comercializar seus livros nos mercados e feiras livres.
Eles montavam uma banca em que os folhetos eram exibidos (por esse motivo os poetas da literatura de cordel também são chamados de “poetas de bancada”) e, para atrair curiosos e compradores, costumavam cantar em voz alta alguns trechos dos poemas, podiam ser dramas, tragédias, romances ou sátiras. No momento mais importante da narrativa, o canto do poema era interrompido. Só saberia o final da história quem comprassem o folheto. Portanto, a métrica perfeita seria a condição para que o poeta exercesse sua performance com maestria diante do público e garantisse venda do seu material.

Fundação da Academia Brasileira de Literatura de Cordel
Foi a partir de uma sextilha, com rima primorosa e preciosidade sonora, que Gonçalo Ferreira da Silva, um dos cordelistas fundadores da ABLC, saudou a criação da casa:
"Da inspiração mais pura,
No mais luminoso dia,
Porque Cordel é cultura
Nasceu nossa Academia
O céu da literatura
A casa da poesia"
Fundada em 7 de setembro de 1988, na Rua Leopoldo Fróes, 37, a Academia conta atualmente com 40 membros efetivos e mais de 20 mil títulos em seu acervo. A curadoria é feita pelo atual vice-presidente, Marlos Herval Lima da Silva, filho de Gonçalo. Cerca de 20% do que os acadêmicos produzem é enviado para a Academia, que não só vende os escritos no local, aberto ao público, como cataloga os folhetos e obras para consulta de pesquisadores: "Eu vou guardando e conservando os folhetos dos autores, pois muitas vezes eles não têm como cuidar. Temos contato de pesquisadores, até de fora do Brasil, perguntando por determinadas obras, autores e temas, por exemplo, sobre mulheres, sobre racismo, sobre o negro na história, e eu divido tudo isso para facilitar a vida do pesquisador. É nesse trabalho que vemos o quanto Cordel é produzido. Tem autores que nem sabem que tem tanto folheto escrito", analisa Marlos.
O seu pai, Gonçalo, é da cidade de Ipu, no Ceará, mas foi longe da paisagem do sertão cearense que começou a arriscar suas rimas. Morando no Rio desde os seus 14 anos, começou a se aprofundar no estudo da história e técnica do cordel, quando montou na Feira de São Cristóvão, reduto de nordestinos no Rio de Janeiro, uma banca com publicações que chamou a atenção de pesquisadores e curiosos pelo assunto. Excluído dos espaços reservados às elites, a Feira de São Cristóvão era um espaço de acolhimento, resistência e lutas sociais.
No final da década de 80, cerca de quatro anos depois, a pequena banca passou a reunir, de maneira despretensiosa, muitos poetas de bancada, como são chamados os poetas de cordel, que se encontravam e conversavam sobre a literatura. Nesta época, Gonçalo morava com a mulher Maria do Livramento e seus filhos no Méier, na Zona Norte. Ele e a Madrinha Mena, como Maria do Livramento é carinhosamente chamada no meio cordelista por ser aclamada madrinha dos poetas, deixavam a cria em casa para montar a banca e vender os cordéis. Madrinha Mena lembra que saíam de casa às 5h e voltavam às 23h.
"Eu e Gonçalo andávamos até o Engenho de Dentro para pegar uma condução até a Feira de São Cristóvão, sendo que lá não tinha a organização que tem hoje. Então montávamos a banca em um determinado lugar, vinha alguém que gostava daquele ponto, derrubava a banca, derrubava os folhetos no chão e botava as coisas deles ali. Não era assim tão fácil. Bem diferente do que a gente vê hoje", afirma a Madrinha.
Existia, naquela época, um movimento chamado Cantinho da Poesia, que foi idealizado pelos cordelistas Elias de Carvalho e Miguel Bezerra, que se julgava o embaixador do movimento cordelista da Feira de São Cristóvão. "Era como um oásis, no meio daquela barulheira toda. Ali só ficavam repentistas e vendedores de cordel. Mestre Azulão, um grande poeta, um dos poucos que é cordelista e repentista, Apolônia Alves do Santos e Miguel Bezerra estavam sempre lá, Raimundo Santa Helena ia de vez em quando. O Raimundo era um lutador pelos direitos da literatura de cordel", diz Marlos.
Em 1978, o general do Exército Humberto Peregrino, um amante da cultura popular, criou a Casa de Cultura São Saruê em sua casa, em Santa Tereza. A fundação tinha uma coleção de arte popular e um Centro de Estudos e Editoração da Literatura de Cordel. Na década de 1980, este centro publicou dezenas de folhetos de poetas radicados no Rio.
Paralelamente, a partir da década de 1970, as bancas de cordel da feira de São Cristóvão começaram a receber visitas de pesquisadores brasileiros e estrangeiros em busca de informações e de folhetos para a produção de trabalhos acadêmicos. As bancas de Gonçalo Ferreira da Silva, de Mestre Azulão e de Raimundo Santa Helena passaram a ser uma espécie de laboratório de pesquisa para linguistas, sociólogos e historiadores interessados na riqueza do cordel produzido no Brasil. Foi então que surgiu a ideia da criação da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, mas apenas em 1988 que ela foi oficialmente fundada.
Enquanto a Academia não tinha sede própria, as reuniões ocorriam em diversos pontos da cidade, como restaurantes e bares. Foi em 1993 que Humberto Peregrino decidiu ceder o espaço do Centro de Literatura de Cordel da Casa de Cultura São Saruê para a ABLC, onde é instalada atualmente e funciona também, além de ponto de encontro, como uma livraria onde são vendidos romances e folhetos de cordel.
Graças à academia, os cordéis passaram a integrar o currículo da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, fazendo assim o "caminho de volta" do estilo.
Gonçalo faleceu em novembro de 2022, e a diretoria atribui muitas das dificuldades atuais da Academia à morte de seu fundador:
"A força da academia vinha muito do Gonçalo. Ele era extremamente carismático e acolhedor. Hoje, temos muita inabilidade de chegar ao poder público. Precisamos ter uma entrada, fazer com que entendam que a ABLC não é minha, da minha mãe ou do Almir, por exemplo. A Literatura de Cordel é Patrimônio Imaterial do Brasil [foi reconhecida na categoria de Bens Imateriais], temos mais de 34 cordeltecas pelo país, temos representação na Biblioteca de Washington, onde Gonçalo foi o primeiro cordelista que discursou, convidado pela Biblioteca do Congresso Americano, temos também representação na França, uma espécie de cordelteca no Instituto de Montpellier. Hoje, onde você chegar nestas localizações, tem o dedo da ABLC e do Gonçalo. Atualmente, a Academia é mais conhecida fora do Brasil do que no país", avalia Marlos.
Pesquisador da instituição, o cordelista Severino Honorato busca parcerias que possam orientar como a academia poderia participar de editais, para que trabalhos sejam financeiramente viáveis, como a edição de um novo Dicionário Brasileiro de Literatura de Cordel.
"Precisamos de recursos financeiros para bancar projetos. A verba pública tem que financiar os produtos para que sejam benefícios de toda a população, buscar elementos que beneficiem todos os cordelistas do Brasil", afirma Severino.

Serviço:
Academia Brasileira de Literatura de Cordel
Endereço: Rua Leopoldo Fróes, 37 – Santa Teresa
Horário: Domingo a domingo, das 9h às 17h
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