Publicado 05/11/2023 00:00 | Atualizado 05/11/2023 09:09
Rio - Após planejar a Cidade da Cerveja em lugares como o Porto Maravilha e a Estação Leopoldina, ambos no Centro, a Prefeitura do Rio mudou o foco e decidiu investir em uma "Rua da Cerveja" para revitalizar a Rua da Carioca, reabrindo imóveis fechados e trazendo, de novo, vida ao endereço histórico.
A ideia é dar incentivos financeiros para pequenas cervejarias artesanais do Rio instalarem brewpubs (uma combinação de fábrica e bar, pequenos estabelecimentos que produzem cerveja que, depois de pronta, é comercializada no local) e bares na tradicional via do Centro, que vinha sofrendo com o esvaziamento desde 2014, por conta da alta no valor dos alugueis das propriedades. Em contrapartida, as cervejarias devem ter horário de funcionamento estendido e funcionar aos fins de semana, além de exercer as atividades propostas pelo período mínimo de 30 meses.
Dentro do programa chamado de 'Reviver Rua da Carioca', a Secretaria municipal de Desenvolvimento Urbano e Econômico (SMDUE) e a Companhia Carioca de Parcerias e Investimentos (CCPar) darão subsídio para atrair cervejeiros à região. O repasse será de R$ 1 mil por m² para reforma e de R$ 75 por m² para despesas mensais, considerando um teto para imóveis de até 200m². Os repasses mensais podem durar de 30 a 48 meses.
As lojas inscritas no projeto precisam estar vazias e ser de fachada ou ter algum contato com a rua. Já as cervejarias artesanais precisam produzir e comercializar seus rótulos, propor atividades e eventos que envolvam o público e funcionar à noite e aos fins de semana. As cervejarias artesanais interessadas e os donos dos imóveis que queiram alugar seus espaços devem se inscrever no edital disponível no link https://smdue.prefeitura.rio/ruadacerveja/, até o dia 18 de novembro. As cervejarias devem apresentar um planejamento financeiro, feito em planilha, para apreciação.
As empresas e os imóveis serão, então, avaliados pela SMDUE, que julgará se estão habilitados a participar do projeto. Após isso, as duas partes seguem com as negociações sem a intervenção da prefeitura. Até o momento, dez cervejarias artesanais e 11 imóveis se inscreveram para participar do programa.
A maior parte dos imóveis da Rua da Carioca é tombada pelo Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH) e pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac), o que torna onerosa a reforma das propriedades, uma vez que é necessária mão de obra especializada e não podem descaracterizar o imóvel, ou seja, tirar os elementos originais que foram determinados na resolução de tombamento. Mesmo assim, os cervejeiros consideram até R$ 200 mil um bom valor para as intervenções nos imóveis. A desconfiança é se os imóveis conseguirão dar conta de um espaço de produção de cerveja:
"Eu não acho os valores dos subsídios ruins, mas o projeto depende de muita coisa. Não sabemos as condições dos imóveis, se a reforma é suficiente para a adequação às especificações técnicas para produção. Os imóveis têm pé direito alto o suficiente para ser um brewpub? As paredes internas podem ser derrubadas para comportar uma pequena planta de produção? Um galpão é um tipo de imóvel mais apropriado, pois é mais fácil para, inclusive, suprir exigências do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa). Sem ver os imóveis, conhecê-los, é difícil avaliar se o projeto é viável", opina Pedro Fraga, sócio proprietário da cervejaria carioca Wonderland, que encerrou as atividades durante a pandemia.
"É um risco alto investir em um bar com uma pequena fábrica, sem ter capacidade de ampliação. Existem requisitos do Mapa, do Corpo de Bombeiros e da Vigilância Sanitária, por exemplo, de despejo de efluentes. A água utilizada em certos processos não pode ser descartada em um esgoto sem tratamento. A cervejaria precisa se adequar ao que o ministério pede. Para mim, uma consultoria especializada poderia ter avaliado antes, ou que seja efetuada uma parceria com o Mapa para prever uma viabilidade mínima quando os imóveis estiverem disponíveis", completa.
Carlos Henrique Costa, conhecido como 'Caíque' no meio cervejeiro, e à frente da Cervejaria Candanga, acha que a estrutura dos imóveis não será problema, o que o preocupa são as partes de esgoto e elétrica:
"No meu planejamento financeiro enviado para análise, coloquei boa parte para elétrica e esgoto. Acredito que a tubulação desses imóveis ainda seja de ferro, terá que ser trocada por alguma outra coisa que aguente alta temperatura e precisará de tubulação maior para maior descarte de água. Isso está calculado no projeto. A maioria desses prédios era lojas e restaurantes, que não tinha isso. Vou precisar de estrutura e cabeamento muito maior, tenho certeza que teremos problema com isso. E também não sei como será o impacto na região, pois teremos um gasto de água enorme. Esse é outro motivo de não poder colocar a produção toda na Rua da Carioca", afirma, referindo-se à pequena produção de cerveja no brewpub somada à produção em fábricas maiores, em outros espaços, para ter um volume suficiente de cerveja para venda.
A exigência de que as cervejarias se instalarem na futura Rua da Cerveja montem um brewpub é justificada pelo secretário municipal de Desenvolvimento Urbano e Econômico, Chicão Bulhões, como um atrativo para o local: "Queremos ter um selo para a cerveja carioca. Queremos uma atividade de produção para o consumidor entender que a cerveja que ele está bebendo foi produzida na Rua da Carioca, em uma escala menor", diz o secretário.
A condição de o local ser um brewpub, contudo, divide opiniões no meio cervejeiro. Enquanto uma parcela vê a iniciativa com bons olhos, outra a considera justamente o empecilho para se inscrever no projeto.
"Para reforma do imóvel, R$ 200 mil é bom, ajuda, sim, do ponto de vista imobiliário, para a transformar a loja em um bar e brewpub, mas para instalação fabril de produção, o investimento é muito mais alto. Da forma que o projeto está desenhado é muito caro", afirma André Guedes, sócio da cervejaria Backbone, que ainda está estudando o projeto para decidir se fará parte ou não. "Acho ótimo criar um polo cervejeiro na Rua da Carioca, só não acho que essa questão de necessidade de produção seja interessante, pois produzir é caro, as instalações fabris são caras e ter pessoas qualificadas é complicado. Nós teríamos que ter dois controles de produção, dois gerentes de produção, um no brewpub da Rua da Cerveja e outro na nossa fábrica, em Visconde de Mauá. Toda a estrutura teria que ser multiplicada por dois, e não temos garantia de fluxo de pessoas para pagar as contas", completa.
Já o empresário Sérgio Fonchaz, da cervejaria Sundog, acha que a obrigatoriedade de instalar um brewpub é uma ótima ideia:
"Um bar pode ser aberto em qualquer região do Rio com cervejas, na maioria das vezes, produzidas fora da cidade. Agora, um brewpub vai ter cervejas produzidas no local, e isso traz um valor imenso para as cervejarias de verdade, que querem oferecer receitas originais", avalia Sérgio.
O receio de Sérgio é em relação ao curto prazo para que os bares e brewpub comecem a funcionar: "A previsão é de tudo estar pronto em janeiro, o que é impossível, pois há um projeto arquitetônico de recuperação e planejamento que precisa ser executado para então, só em seguida cotar, comprar, instalar e testar a planta. E só depois de tudo pronto receber a vistoria do Mapa e resolver as possíveis pendências. A prefeitura não levou em consideração esse fator que, a meu ver, é importantíssimo", diz Sérgio, que ressaltou que enviou proposta para a Rua da Cerveja, mas está acompanhando a evolução do projeto.
Caíque também é otimista quanto à imposição para a criação de um brewpub: "Este é um dos pontos mais polêmicos do projeto, mas foi o que eu mais gostei, pois tem muito 'atravessador' no mercado cervejeiro, pessoas que não têm receitas próprias e compram receitas de outras cervejarias, colocando o rótulo da cervejaria delas para revender (essa prática é chamada de white label, quando uma cerveja pode ser comprada e revendida por uma outra marca, sem ser receita dela. Não há exclusividade neste modelo de negócios, podendo ter várias receitas iguais de várias cervejarias diferentes). Abrindo bar na Rua da Cerveja, com brewpub, temos as verdadeiras cervejarias. E a imposição de as cervejarias terem, pelo menos, dois anos de mercado, afasta os aventureiros", afirma Caíque, animado. Pelos seus cálculos, ele ainda terá que investir R$ 250 mil, para comprar câmara fria e colocar painel solar, para trabalhar a panela cervejaria, que gasta muita luz.
No entanto, para fazer sentido ter uma produção, mesmo que pequena, é preciso ter volume de venda alto para sustentar o negócio. E esta é uma das apreensões de cervejeiros: "O maior passo no crescimento de uma cervejaria é ter sua própria fábrica. A questão principal é o equilíbrio nesse plano de negócios. O termo artesanal se refere mais a qualidade do produto do que ao processo produtivo, que é industrial, mesmo que em escala bem menor. Como cerveja é um produto de consumo, a margem de lucro costuma ser pequena e é necessário produção - e venda - de grandes volumes para compensar o investimento. Os equipamentos são caros e os impostos também são bastante altos. Talvez uma saída para esses brewpubs seja ter capacidade bem reduzida, para produzir pequenos lotes, e também vender cervejas que a marca fabrique em outros localidades ou recorrer a rótulos de terceiros", acredita Pedro.
A incerteza de clientes na Rua da Carioca, a maior tração para o programa dar certo, incomoda cervejarias que pensam em se candidatar ao projeto da Rua da Cerveja: "Nós ainda não fizemos a inscrição, pois, apesar de acharmos o projeto muito interessante, há o desafio de a prefeitura conseguir transformar a região em um polo que realmente atraia as pessoas, tenha demanda de público, e gere movimento para todas as empresas que estarão no projeto", diz André.
Pedro endossa a desconfiança sobre o fluxo de pessoas na Rua da Cerveja: "Considerando que o Centro está menos movimentado, terá público suficiente para todas estas cervejarias se tornarem viáveis financeiramente? Um mesmo público para dez, 15 cervejarias, e todas elas serem lucrativas? Não temos uma rua da pizza, ou do hamburguer, por exemplo, em que os estabelecimentos com propostas muito similares compitam um com o outro, lado a lado", questiona.
A prefeitura planeja revitalizar a região central da cidade com o programa Reviver Centro, buscando transformar o Centro, desenvolvido para ser exclusivamente comercial (apenas em 1994, o licenciamento residencial foi autorizado na região), em uma área residencial. Entre as propostas está o "Programa de Moradia Reviver Centro", com o objetivo de aproveitar a infraestrutura urbana existente e as edificações para ampliar a oferta de moradia para populações de diferentes faixas de renda. Além disso, a CCPar está trabalhando na revitalização do Porto Maravilha, vizinho ao bairro central da cidade, onde estão sendo erguidos sete novos residenciais e está nascendo o Porto Maravalley, projeto em parceria com a SMDUE. E esta atração de moradores para o Centro é uma das apostas do município para levar movimento à Rua da Carioca:
"A prefeitura fala muito em revitalizar ponto de moradia, mas eu duvido. Tenho as minhas dúvidas em relação à residência. O público que morará no Centro bebe cerveja artesanal? Eu não acredito neste público. Eu acredito no público que trabalha no Centro. Eu estarei em um lugar revitalizado, serei novidade, acredito que se tiver segurança e bom atendimento, mesmo se eu for a única cervejaria instalada, será legal. Daqui a pouco terá a temporada de navio chegando ao Rio e os turistas andarão muito por aquela região. Pessoas também estarão indo a galerias com o Reviver Cultural", espera Caíque. "O meu medo são os donos dos imóveis crescerem o olho e aumentarem o valor do aluguel".
Segurança
A falta de segurança é uma reclamação em comum dos cervejeiros, já que a pandemia e a crise financeira afastaram o público, fechou o comércio e o Centro, principalmente aos fins de semana, vive uma sensação de abandono: "Hoje a Rua da Carioca é uma rua praticamente abandonada, escura, suja e sem qualquer segurança ou atrativo que estimule a circulação de pessoas, especialmente nos finais de semana. No projeto não há qualquer menção à questão da segurança. Existe o Centro Presente, mas junto com o projeto deveria haver alguma proposta de segurança específica para garantir a integridade dos bares, já que serão instalados em imóveis há anos abandonados. Isso é um pouco preocupante, porque deveria ser prioridade em um projeto público", afirma Sérgio.
A preocupação também assombra Caíque, mas ele considera que o poder municipal auxiliará na questão: "A falta de segurança é um dos pontos que me desanima com o projeto. Não sei se o meu maior medo seria na Rua da Carioca ou no trajeto de volta para casa. Mas acredito que terá menos violência se houver movimento. E também, e eu falar com o prefeito que preciso de policiamento, terá um jeito. Isso acabaria não sendo um problema. Acho que, na verdade, nós seríamos a solução".
Em linhas gerais, o projeto precisa da junção de empresários que façam um estudo apropriado para criar um plano de negócios adequado e uma dose de otimismo do público:
"Tudo depende do equilíbrio entre o que o empresário quer (planta adequada ao plano de negócios), o que o imóvel permite, se o público vai abraçar a ideia e se a revitalização que a prefeitura espera de fato aconteça. Aí é que está o risco. De qualquer forma, o incentivo dado pela SMDUE faz sentido em um projeto de revitalização, mas é preciso estudo do imóvel e esperança para que o público-alvo se desloque do bairro onde reside para ir ao Centro, ou o Centro volte a ser movimentado com pessoas de trabalho. Isso é necessário para justificar a abertura de um negócio que, mesmo tendo subsídio, tem um custo alto", diz Pedro.
Segundo os cálculos da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Econômico, a Rua da Cerveja deve movimentar R$ 222 milhões em 4 anos e gerar uma massa salarial (soma dos salários) de R$ 41,8 milhões, no mesmo período.
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