Escavações conduzidas em 2011 encontraram centenas de artefatos de matrizes africanas,Reginaldo Pimenta/Agência O Dia
Publicado 23/11/2023 14:06
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Rio - As obras de valorização do Cais do Valongo, na Zona Portuária do Rio, foram entregues nesta quinta-feira (23), após seis meses de trabalhos. Patrimônio da Humanidade desde 2017, o Sítio Arqueológico recebeu um novo guarda-corpo, iluminação cênica e sinalização informativa no padrão mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O evento também inaugurou a exposição "Valongo, Cais de Ancestralidades", sobre a história da relação entre o espaço e o território da Pequena África. 
"Celebramos aqui um momento de consolidação do Cais do Valongo. Essa história começou a ser descoberta há 10 anos e a gente vê agora a transformação desse espaço. Valeu a pena apostar no projeto, pago com Certificados de Potencial Construtivo (Cepacs). Meu agradecimento a toda estrutura do Estado brasileiro: os governos federal e municipal. A Prefeitura vai continuar pagando a conta da manutenção daqui, cuidando do Jardim do Valongo e fazendo com que essa área possa avançar sempre", declarou o prefeito Eduardo Paes.
A revitalização foi realizada em uma parceria entre a Prefeitura do Rio, Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e Instituto de Desenvolvimento e Gestão (IDG), sendo o último responsável pela captação dos recursos e execução das obras do guarda-corpo, produção da nova sinalização e instalação da exposição artística com curadoria da historiadora especialista na História da Escravidão e das Relações Raciais nas Américas, Ynaê Lopes dos Santos. 
Já a nova iluminação foi implementada pela Rioluz, por meio de contrato de parceria público privada (PPP) com o consórcio Smart Luz, que poderá aplicar cores no Cais em dias comemorativos ou em prol de causas sociais e culturais. "Ao assumimos essa gestão, colocamos como prioridade que o patrimônio cultural de matriz africana seria de fato o primeiro elemento que nós recuperaríamos com a aplicação do nosso orçamento. Estamos trabalhando para que a cultura de matriz africana seja valorizada como uma estratégia também de combate ao racismo e à desigualdade racial nesse país", disso o presidente do Iphan, Leandro Grass.
As obras de valorização foram a segunda fase de intervenções, com investimento de R$ 2 milhões, em parceria com a empresa chinesa de energia elétrica State Grid Brazil Holding, através do programa de financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). A primeira etapa foi finalizada em 2019, em parceria com a Embaixada dos Estados Unidos, com investimento de outros R$ 2 milhões. Na época, o escopo contava com pesquisa arqueológica e obras de conservação e consolidação da estrutura do Valongo. 
"Hoje é um dia muito importante para o IDG. Conseguimos juntar um grupo de parceiros, como o State Grid, o Consulado Americano e o Iphan, para dar todo o respaldo técnico ao trabalho e poder cumprir essas duas etapas: primeiro foram as obras civis de consolidação da ruína e a conversa sobre educação patrimonial com todo o território; e agora fazendo a melhoria da infraestrutura com esse guarda-corpo, a nova iluminação e toda a sinalização com padrão de patrimônio mundial da Unesco", afirmou o presidente do IDG, Ricardo Piquet.
Na inauguração, a Assessoria para Povos e Comunidades Tradicionais da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Clima também lançou o painel de dados do Cais do Valongo, com informações do Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos Museu Memorial (IPN) e de guias de turismo que atuam na região da Pequena África. O primeiro quadro é o de visitas, um indicador solicitado pela Unesco para o monitoramento do Sítio Arquelógico.
Em conjunto com o Comitê Gestor do Cais do Valongo, novos painéis serão estruturados para o aperfeiçoamento da administração. O quadro lançado hoje foi criado em parceria com o escritório de dados da Prefeitura do Rio e pode ser acessado pelo site www.dados.rio/datalake. Segundo a Assessoria, a iniciativa está alinhada ao Objetivo do Desenvolvimento Sustentável (ODS 11) da Organização das Nações Unidas (ONU), que promove o acompanhamento para os governos e a sociedade civil da evolução das estratégias de governança integrada, participativa e compartilhada do Cais do Valongo. 
"Hoje a gente lançou o primeiro painel, que é o quadro que resume as visitas que o Cais recebeu desde 2016 até 2023. Totalizamos agora 51 mil pessoas que visitaram o Cais do Valongo, de 2016 até 2023. É um número significativo, mas a gente ainda considera que está abaixo do que o Cais pode receber. A gente espera que com essas obras de valorização, com as as novas ações que a prefeitura e o Governo Federal, junto com a sociedade civil, vão realizar, o Cais do Valongo se torne mais ainda um núcleo da Pequena África, um ponto turístico, um ponto de referência, um lugar de memória que receba muito mais de 50 mil visitantes", afirmou o assessor da pasta, Leonardo Mattos Xangô. 
A guia de turismo e historiadora Luana Ferreira afirmou que revitalização do Sítio Arqueológico é uma oportunidade de fomentar o afroturismo. "A gente está falando de afroturismo, de um monumento histórico, de um patrimônio que a gente pode falar material e imaterial, que está de frente para o Cais do Porto do Rio. Eu estou olhando para um cruzeiro, mas para o mercado de turismo, esses turistas sequer passam aqui, a condição estava muito precária. Hoje a gente tem plaqueamento, iluminação à noite, segurança. Então, que esses turistas que descem no Cais do Porto possam não apenas ir ao Cristo Redentor, mas vir para cá consumir a história e a cultura da Zona Portuária e da Pequena África". 
Para Ferreira, a valorização do Cais do Valongo representa a luta contra o racismo e a importância do legado do povo negro. "A cidade do Rio faz hoje parte da rede de cidades antirracistas, então, ter o Valongo revitalizado é um grande passo. A gente fala de reparação histórica, de luta antirracista, da briga contra o apagamento histórico e do legado do povo preto na construção da identidade afro-brasileira e afro-carioca. O Cais do Valongo é um patrimônio reconhecido pela Unesco, então ter ele em bom estado conservação, colocar ele dentro do circuito turístico é fundamental, é trazer dignidade para a história preta".
O evento de inauguração contou também com a presença do presidente do BNDES, Aloízio Mercadante; da cônsul-geral dos Estados Unidos, Jacqueline Ward; da coordenadora cultural da Unesco no Brasil, Isabel de Paula; do cônsul comercial da China, Yuan Sheng Xu; do secretário municipal de Cultura, Marcelo Calero; e do presidente da CCPAR, Gustavo Guerrante, entre outras autoridades, além de representantes de instituições da Pequena África.
O Cais do Valongo foi redescoberto em 2011, na fase inicial do projeto Porto Maravilha de revitalização da Zona Portuária. À época, o município investiu mais de R$8 bilhões na Região Portuária, sendo mais de R$30 milhões no Sítio Arqueológico. O professor doutor em História Comparada, babalaô Ivanir dos Santos, participou do evento e destacou que além da importância para a história afro-brasileira, o espaço é de grande contribuição para a cultura e a construção da identidade do país. 
"Todo mundo acha que descobriram o Cais do Valongo, não, o Cais do Valongo já estava aqui. Na verdade, ele emergiu a partir de uma obra que foi feita nessa área e o movimento negro não deixou ele ser enterrado de novo. A partir desse lugar, que além de ter vindo as nossas dores, os nossos sofrimentos, veio a possibilidade de contribuir com o marco civilizatório no Brasil. Por aqui passou nosso conhecimento pela metalurgia, por aqui passaram os nossos saberes das ervas, das raízes, dos nossos saberes ancestrais que estão ligados à questão da medicina tradicional. Por aqui passou a marca das nossas culturas, hoje a identidade brasileira se dá a partir, justamente, do samba, da capoeira, da congada, do maracutu, em qualquer lugar do Brasil ou no exterior, passou tudo por aqui. E por aqui passou também a nossa resistência ancestral".
Patrimônio Mundial
O Cais do Valongo foi construído em 1811 pela Intendência Geral de Polícia da Corte do Rio de Janeiro, para retirar da Rua Direita, atual Rua Primeiro de Março, o desembarque e comércio de africanos escravizados que eram levados para as plantações de café, fumo e açúcar do interior do estado e de outras regiões do Brasil. A estimativa é de que entre 500 mil e um milhão de escravizados passaram por lá até 1831, vindos principalmente de portos do atual território de Angola e Moçambique.
Patrimônio Mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) desde 2017, ele tem uma forte ligação com a história da escravidão no Brasil e é considerado o maior porto receptor de pessoas escravizadas do mundo. Mesmo com a proibição do tráfico negreiro em 1831, continuou sendo um dos principais pontos para compra e venda de pessoas.
Escavações conduzidas em 2011 pela arqueóloga Tania Andrade Lima abriram um pedaço de terreno de quatro mil metros quadrados, de onde saíram centenas de artefatos de matrizes africanas, como contas de colares, búzios, brincos e pulseiras de cobre, cristais, peças de cerâmica, anéis de piaçava, figas, cachimbos de barro, materiais de cobre, âmbar, corais e miniaturas de uso ritual. A profissional trabalhou para a Prefeitura do Rio entre 2010 e 2012, atuando na fase 1 das obras do Porto Maravilha, com intervenções em ruas da região, entre elas a Barão de Teffé, onde foi encontrado o Sítio Arqueológico. 
Neste ano, a arqueóloga carioca foi uma das vencedoras do Hypatia Award 2023, da Confederação dos Centros Internacionais para a Conservação do Patrimônio Arquitetônico (CICOP Net), pelos serviços prestados à Arqueologia, à História e ao Patrimônio Cultural da Humanidade, se tornando a segunda brasileira a vencer o prêmio internacional nessa área. 
Em 2012, a Prefeitura do Rio acatou a sugestão das Organizações dos Movimentos Negros e transformou o espaço em monumento preservado e aberto à visitação pública. O Valongo passou a integrar o Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana, que estabelece marcos da cultura afro-brasileira na Zona Portuária, ao lado do Jardim Suspenso do Valongo, Largo do Depósito, Pedra do Sal, Centro Cultural José Bonifácio e Cemitério dos Pretos Novos. Localizada entre os bairros da Gamboa, Santo Cristo e Saúde, a região compreende a Pequena África, ocupada por uma população majoritariamente negra, cuja história está ligada ao tráfico de escravizados, à diáspora africana e ao nascimento do samba.
Desde 21 de março deste ano, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), autarquia federal vinculada ao Ministério da Cultura, coordena o Comitê Gestor do sítio arqueológico do Cais do Valongo, entidade responsável por estabelecer diretrizes e monitorar a efetividade das ações de preservação e salvaguarda do bem. O comitê é composto por 15 instituições representativas da sociedade civil e 16 governamentais nas esferas federal, estadual e municipal.
 
 
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