O vício em apostas é reconhecido pela OMS como um transtorno, afeta entre 1% e 1,3% da população brasileiraDivulgação
Publicado 08/07/2024 00:00
A facilidade do celular, a curiosidade e a vontade de ganhar dinheiro rapidamente têm levado muitos brasileiros aos sites de jogos de azar, que são proibidos no país. O vício em apostas, reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um transtorno, afeta entre 1% e 1,3% da população brasileira. Com a oferta crescente de jogos aparentemente inofensivos como o Tigrinho ou as apostas esportivas, cada vez mais pessoas são atraídas para o mundo das apostas.
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A psicóloga clínica Andreia Calçada descreve que o vício em jogos, sejam eles eletrônicos ou de azar, caracteriza-se por uma compulsão e uma dependência. Ela explica: “A pessoa que tem vício em jogos, sejam eles eletrônicos ou de azar, possui uma compulsão, uma dependência. O vício em jogos ou qualquer tipo de vício trabalha por recompensa. Cada vez que a pessoa ganha, a dopamina e alguns outros hormônios importantes são liberados, gerando prazer. Então a pessoa vive na busca, na dependência de sentir aquilo. Geralmente, são pessoas que têm problemas em outros níveis e elas buscam essas sensações de prazer como forma de evitar sentimentos ruins ou situações que estão vivendo no momento”.
A psicóloga especialista em dependência química e compulsões Gabriela Henrique salienta: “Nosso cérebro tem o sistema de recompensa que nos faz acreditar que, ao termos sentimentos positivos e sensação de bem-estar, devemos repetir o comportamento inúmeras vezes porque sempre será bom. Mas não é bem verdade. Assim, alteramos a neuroquímica cerebral e a vontade vem de forma impulsiva, nos fazendo buscar aquela ação novamente, sem pensar. A ilusão de que sorte é benefício e traz recompensas sem fim, fatores associados ao afeto, à autoestima e à busca de autovalorização reforçam o comportamento de busca pelo suposto ganho e empoderamento pessoal. O que só aumenta o risco de danos à saúde mental da pessoa que joga".
O isolamento social é uma consequência comum para quem é viciado em jogos, dedicando grande parte de seu tempo, energia e dinheiro a essa atividade. Andreia Calçada observa que, além das apostas, muitos se endividam, causando problemas financeiros para si e suas famílias, pois o vício se torna a prioridade. Essas pessoas também enfrentam dificuldades de concentração em outras atividades, demonstram impulsividade e frequentemente mentem sobre o tempo gasto jogando, o que caracteriza um transtorno psiquiátrico.
Calçada destaca que as pessoas viciadas em jogos frequentemente possuem questões psicológicas ou psiquiátricas subjacentes, como depressão, isolamento social, problemas com drogas ou dificuldades de interação social. Ela afirma: “O perfil típico geralmente é de pessoas mais introvertidas, mais isoladas socialmente, com dificuldades sociais e afetivas e para desenvolver autonomia. Isso acaba gerando problemas no desempenho acadêmico e profissional e problemas familiares”, afirma.
“Atualmente, temos a maioria do sexo masculino de apostadores em jogos digitais no país, e pessoas mais jovens. Assim como a busca pelo tratamento por jogadores compulsivos também é, em maioria, de homens jovens”, reforça Gabriela Henrique.
Um estudo da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), sobre o uso de aplicativos de apostas esportivas online, as bets, mostrou que cerca de 22 milhões de pessoas, ou seja, 14% da população fizeram pelo menos uma aposta online em 2023. Dessas, 22% consideraram a prática um investimento financeiro.
“É comum um paciente compulsivo por jogo relatar que acredita que, se ele ganhou uma vez, poderá ganhar novamente, mesmo que isso demore mais algumas rodadas. Se o resultado for negativo, há a tendência de apostar de novo para recuperar o que perdeu. E assim, muitas pessoas têm ampliado o tempo jogando, em busca de sorte e recompensas imediatas. O fato de os jogos serem cada vez mais acessíveis, variados, pelo celular e sem modelos de limites pré-estabelecidos ou leis bem determinadas favorece que a pessoa que joga justifique a necessidade de repetições. Isso tem favorecido o grande crescimento no desenvolvimento da compulsão por jogos digitais”, acrescenta a psicóloga Gabriela Henrique.
Ela ainda salienta que, para identificar se alguém precisa de ajuda especializada, é importante observar a presença de quatro ou mais dos seguintes sintomas durante um ano: pensar frequentemente em jogar; irritar-se quando perde ou quando é necessário parar de jogar; sentir vontade de jogar até ganhar, independentemente das perdas financeiras e físicas; jogar por ansiedade, angústia ou tédio; mentir sobre hábitos de jogo, minimizando tempo, valores e perdas; ter prejuízos no emprego e/ou relacionamentos devido ao hábito de jogar; não conseguir ficar sem jogar por um período maior do que o habitual; necessidade de aumentar o valor das apostas gradualmente; pedir empréstimos, vender objetos de valor, mentir e trocar afazeres por dinheiro para jogar mais.
Tratamento
A negação do problema é comum entre os viciados, que tentam mascarar seu comportamento dos outros. Este comportamento pode resultar em conflitos familiares e dificuldades no desempenho acadêmico ou profissional. Calçada sugere que, em termos de tratamento, é preciso ter grupo de apoio; as pessoas com compulsões precisam desse suporte grupal, psicoterapia individual, avaliação e tratamento psiquiátrico, porque quase sempre a pessoa tem outras questões emocionais associadas, que podem estar relacionadas até com uma depressão. E em alguns casos há necessidade de internação, como é o caso com o uso de drogas, para tratar a pessoa daquele vício. Além disso, a retirada do jogo pode ocasionar crises de abstinência e a pessoa precisa ter esse suporte.”
É possível prevenir?
Para a especialista em dependência química e compulsões Gabriela Henrique, existe a possibilidade de prevenção nas famílias: “através da conscientização com horários para jogar, de no máximo 1 hora por vez, até três vezes por semana. Principalmente no cérebro de até 24 anos, que ainda está em formação. A escolha do tipo de jogo, não jogar após às 19 horas, ou seja, de acordo com cada família, estabelecer regras e incluir outras formas de lazer e distração para adolescentes e jovens”, afirma.
Ela ainda acredita que a participação da família é importante na prevenção, dando o exemplo no uso dos dispositivos eletrônicos como o celular. “A interação com os responsáveis também faz parte. Pois vejo pais que querem que os filhos saiam do celular e façam atividades variadas, mas que, ao estarem juntos, não conversam e ficam no celular, em redes sociais ou conversas privadas, sem interagirem com seus jovens. Dar exemplo, fazendo”, sugere a especialista.
A psicóloga afirma que “a repetição é sempre a mola propulsora para desencadear comportamentos excessivos, logo, a variação de qualidade pode e deve ser precursora na prevenção sobre jogos virtuais”, enfatiza.
As armadilhas das apostas: jogo de azar ou investimento financeiro?
A prática de apostas é frequentemente vista como uma forma rápida e emocionante de ganhar dinheiro, mas, de acordo com o especialista em finanças Marlon Glaciano, essa percepção raramente se traduz em ganhos financeiros sustentáveis: “A realidade é que a maioria dos apostadores acaba perdendo mais do que ganha. As casas de apostas e cassinos são projetados para garantir lucros para seus operadores, o que significa que as chances sempre estarão a favor da casa. Portanto, mesmo que você tenha algumas vitórias, as perdas acumuladas ao longo do tempo tendem a superar esses ganhos”, ressalta.
Além disso, o impacto negativo nas finanças pessoais dos apostadores pode ser significativo. “Muitos acabam contraindo dívidas, maximizando cartões de crédito e até mesmo perdendo propriedades importantes. Esse comportamento pode levar a um ciclo vicioso de tentativas de recuperar perdas, resultando em ainda mais dívidas e problemas financeiros”, afirma.
Para ele, é essencial abordar as apostas com muita cautela: “Em vez de ver as apostas como uma fonte de renda, é mais seguro e sensato tratá-las como uma forma de entretenimento que pode custar caro. Assim, você protege suas finanças e evita o estresse e as dificuldades que acompanham as perdas significativas”, recomenda o especialista em finanças.
Para aqueles que contraíram dívidas significativas devido ao jogo, Glaciano aconselha tomar medidas para reverter a situação: “O primeiro passo é reconhecer o problema e buscar ajuda profissional, como terapia individual ou em grupo, e apoio de organizações como Jogadores Anônimos. Paralelamente, consultar um planejador financeiro pode ajudar a criar um plano de pagamento de dívidas realista, negociar com credores e evitar juros altos. Estabelecer um orçamento rigoroso e priorizar o pagamento das dívidas mais urgentes ou com juros mais altos é fundamental para começar a recuperar a estabilidade financeira”, orienta o especialista.
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