Publicado 09/09/2024 00:00
Invisível aos olhos da sociedade, a população carcerária sofre com muitas mazelas, como falta de condições de higiene, violência e proliferação de doenças. De acordo com dados publicados pelo Ministério da Saúde, no ano passado, e publicado na coluna Esplanada, de O DIA, o sistema prisional contabilizou 20.237 casos do vírus HIV, 9.016 de sífilis e 7.788 de tuberculose. A pesquisa Letalidade Prisional, uma questão de Justiça e Saúde Pública, estudo encomendado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2023, aponta que as mortes nas prisões brasileiras foram causadas, em 62% dos casos, por doenças como insuficiência cardíaca, infecção generalizada e tuberculose.
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Segundo a publicação, a chance de contrair tuberculose dentro do sistema prisional é 30 vezes maior do que quem está em liberdade. Vale lembrar que o Sistema Prisional e Saúde do Preso, explorando as condições de saúde dentro dos sistemas penitenciários e o papel dos agentes penitenciários, foi um dos temas de redação do Concurso Público Nacional Unificado do Governo Federal.
De acordo com a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAP), no 1° quadrimestre de 2024, foram registrados entre a população carcerária fluminense 1.680 casos de tuberculose, 837 de HIV e 686 de sífilis dos cerca de 43 mil presidiários. Em todo o Estado do Rio são 50 unidades prisionais contando com as psiquiátricas. Todos os apenados, segundo a SEAP,  estão sob acompanhamento integral das equipes do Pnaisp (Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional). 
Para que o problema seja amenizado, o Ministério da Saúde, em colaboração com 13 outros ministérios, integra o Programa Brasil Saudável, lançado este ano, que tem como metas eliminar a transmissão vertical de infecções como HIV e sífilis, além de cumprir as metas da Organização Mundial da Saúde para a tuberculose, reduzindo sua incidência e mortalidade. Em parceria com o Ministério da Justiça, o Programa também fortalece as ações de diagnóstico e tratamento de HIV, sífilis e tuberculose no sistema prisional. 
A recente inclusão da tuberculose na Política de Incentivo às Ações de Vigilância, Prevenção e Controle de HIV/Aids, Hepatites Virais e IST proporcionará maior apoio financeiro aos estados e municípios. Dos R$ 300 milhões destinados ao programa, R$ 100 milhões são inéditos para a tuberculose, com foco na ampliação da testagem, busca ativa de casos e aumento do tratamento preventivo para pessoas com maior risco de adoecimento.
A Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro também contribui para diminuição dos números de doenças nos presídios, principalmente em relação à tuberculose. De acordo com o secretário Daniel Soranz, há cerca de dois anos que 22 equipes de atenção primária prisional, formada por médico, enfermeiro, agente de enfermagem, psicólogo e outros profissionais, atuam em 28 unidades prisionais do Estado do Rio de Janeiro.
"Sabemos nos detalhes da saúde do presidiário e testamos todos os pacientes e suas visitas. Identificamos os casos de tuberculose nos presídios. Um de cada 8 sai da penitenciária. Também eliminamos o abandono em presídio, que de 30% passou para 5%. É um recorde. No caso de sífilis conseguimos 100% de sucesso e em relação ao HIV fazemos testes para que se mantenha a carga viral e o vírus não passe para outros detentos’’, afirma o secretário. Soranz explica ainda que as unidades prisionais são de responsabilidade dos estados, mas no Rio de Janeiro, por causa de medida judicial e uma iniciativa da Prefeitura, os presos são atendidos por profissionais do município.

Especialistas se pronunciam sobre o assunto
O Dia conversou com alguns profissionais sobre a situação do sistema penal no País. São eles: a advogada Amanda Magalhães, vice-presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro, Presidente da Comissão de Direito Criminal da OAB Teresópolis, ex-presidente da OAB Jovem-RJ e da Comissão Nacional da Advocacia Jovem do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, a professora Lia Possuelo, do Núcleo de Pesquisa e Extensão com foco no Sistema Prisional (NUPESISP) e do Programa de Pós Graduação em Promoção da Saúde da Universidade de Santa Cruz do Sul.
Também falou com o professor Anderson Moraes, que ministra aulas de Ética e Responsabilidade Social nos cursos de graduação em Ciência da Computação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), além de Patricia Constantino, psicóloga, doutora em Saúde Pública e pesquisadora da Fiocruz. E  João Rafael da Conceição Dias, assistente social, especialista em direito penal e criminologia e doutorando em Serviço Social, que já foi Conselheiro Estadual no Comitê de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro e no Conselho de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro.
De acordo com Lia Possuelo, a saúde do detento é afetada por várias causas. "As doenças infecciosas se proliferam mais nos presídios devido a uma combinação de fatores estruturais, ambientais e sociais como a superlotação, as más condições das celas, sanitárias e de higiene pessoal’’. Para a profissional, o pouco atendimento médico também agrava o problema. "O acesso limitado aos serviços de saúde resulta em diagnóstico e tratamento tardios de doenças. Além disso, não devemos esquecer que a população privada de liberdade é, muitas vezes, vulnerável, antes mesmo do encarceramento, que apresenta histórico de saúde precário, uso de drogas ou outras condições de vida que impactam no adoecimento".
Da mesma opinião compartilham a advogada Amanda Magalhães e o professor Anderson Moraes: "As aglomerações acabam agravando a proliferação de doenças. Somado a isto, são poucos os médicos e profissionais da área de saúde disponíveis em cada unidade prisional", explica Amanda. Já Anderson afirma: "Há uma relação de causalidade entre a aglomeração de pessoas em ambientes insalubres, mal ventilados, com baixo acesso a água potável para hidratação e higiene, sem produtos de higiene pessoal, e as doenças de pele, por exemplo. Além disso, suas refeições tendem a ser preparadas com bastante antecedência e para que se conservem contam com aditivos químicos que a longo prazo são responsáveis pelos distúrbios gastrointestinais que assolam a população carcerária".
Patrícia Constantino é mais esperançosa em relação ao assunto. "Para que consigamos garantir a saúde das Pessoas Privadas de Liberdade devemos investir na implementação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (Pnaisp), que é uma política de saúde pública brasileira criada para garantir e promover a saúde integral da população carcerária. Temos exemplos muito bem-sucedidos no Município do Rio de Janeiro com a presença da equipe da Pnaisp nas unidades".
João Rafael acha que o sistema deixa a desejar:"Quando as estruturas são combinadas com péssimas condições de higiene, superlotação, alimentação inadequada, acesso limitado a equipes técnicas e escassez de medicamentos, criam-se condições sociais para a proliferação de doenças. As dificuldades de acesso ao próprio processo judicial, a ausência de contato regular com a família e a  privação de liberdade contribuem para a deterioração da saúde mental".
Recomendações governamentais
A professora Lia Possuelo explica que existe uma série de recomendações governamentais para que o problema das doenças infecciosas no sistema prisional seja minimizado. "Alguns exemplos são estratégias de prevenção, diagnóstico e tratamento precoce de pacientes, como exemplo a triagem em porta de entrada do sistema prisional (já implementadas em muitas unidades prisionais no país), triagem sistemática em massa, entre outras iniciativas que podem ser realizadas. Uma questão que entendo fundamental é envolver as equipes de segurança, equipes técnicas e professores no cuidado em relação às doenças infecciosas no sistema prisional. Cada um desses atores tem o seu papel neste contexto e plena capacidade para auxiliar, desde que bem capacitados". Ela cita outras providências:

•ampliar a habilitação dos municípios à Política Nacional de Atenção Integral à saúde da população privada de liberdade (Pnaisp), o que permitiria a integração de um número maior de profissionais de saúde dentro das unidades prisionais,  facilitando a realização de estratégias de triagem em porta de entrada, de saída e em massa.
•melhorias na infraestrutura, especialmente das celas, mantendo condições de higiene e de ventilação 
•a efetivação das políticas públicas de trabalho, educação e saúde nas unidades auxilia na reabilitação e reinserção social, o que converge com maior conhecimento e consequentemente maior capacidade de entendimento da problemática referente às doenças infecciosas no sistema prisional.
•As estratégias mais abrangentes como a implementação de novas políticas para revisão de penas (especialmente para crimes não violentos) e promoção de alternativas penais em infrações menores seriam de grande importância, mas complexas, de longo prazo e dependente de muitas áreas.
'O superencarceramento potencializa a contaminação'
Em entrevista ao jornal O DIA, a vice-presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro, Amanda Magalhães, pontua as dificuldades de se implantar um sistema de saúde satisfatório nos presídios do Estado do Rio de Janeiro.
O DIA: Você já foi conselheira e atualmente é vice-presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro, o que pode ser feito para que a situação dos presidiários fique mais amena, principalmente em relação às doenças?
AMANDA MAGALHÃES: A raiz dos problemas no sistema prisional é o superencarceramento. Diversamente do que consta na própria lei sobre a excepcionalidade das prisões preventivas, esta tem sido a regra adotada pelo Judiciário. A maior parte dos presos sequer foi condenado e mesmo com inúmeras cautelares diversas da prisão, segue-se prendendo; é o famoso "prende-se muito, prende-se mal".
O DIA: As cadeias são superlotadas. As péssimas condições de higiene ajudam na proliferação de doenças. Mas como evitar esse 'descaso'?
AMANDA MAGALHÃES: O superencarceramento potencializa a contaminação e a dificulta o acesso à saúde. Considerando que hoje o número de presos provisórios supera o de presos já condenados com sentença penal transitada em julgado, a utilização de cautelares diversas da prisão contribuiria para a redução da população carcerária. Mas, para além disso, acredito que falta a mudança de mentalidade com a adequada compreensão de que o direito à saúde é um direito fundamental a todo ser humano e dever do Estado contribui negativamente no dia a dia e na reflexão sobre ações possíveis. Quando uma pessoa é condenada, a responsabilidade com a saúde desta pessoa é 100% do Estado, afinal ela não pode, por conta própria acessar de forma alguma a medicação adequada, o médico especialista e se submeter a um tratamento que foi indicado especificamente para ela.
O DIA: A população carcerária acaba, muitas vezes, sendo invisível para a sociedade. Quando se fala em atendimento médico, então, é ainda pior. Como é possível mudar esse quadro?
AMANDA MAGALHÃES: Em 2023 o Brasil tinha a terceira maior população carcerária do mundo e esses números só aumentam. A população carcerária é invisível para a sociedade até que seja um conhecido ou um familiar a integrar este grupo. Não se trata de não podermos repudiar um crime e nem de não sermos críticos a determinado fato, o problema é insistirmos em achar que aquela pessoa deve deixar de ser tratado como um sujeito de direitos e de obrigações, quando desejamos que aquela pessoa que errou (ou não) deva sofrer sem acesso ao mínimo. Essa mesma população muitas vezes é invisível para o Judiciário, para o Estado e para os entes que têm papel na execução da pena.
A legislação é clara quanto ao direito a ser restringido: liberdade. Esta restrição, portanto, deve se limitar à liberdade. Quando o Estado, responsável pela condenação destes indivíduos, se esquece que tê-lo no sistema também é sua responsabilidade, qualquer negligência quanto à saúde por exemplo, é de sua responsabilidade.O Estado que prende, o estado que condena deve ser o estado que garante que o cumprimento de pena se dê nos termos da lei. Fiscalizar e denunciar é o caminho. O Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro exerce papel fundamental justamente porque dentre suas atribuições, fiscaliza in loco a realidade dentro das celas e galerias, produz relatórios e solicita repostas concretas.
O DIA: Durante a visita aos presídios é possível ter esperança de ressocialização quando a pena acaba?
AMANDA MAGALHÃES: Sinceramente, considerando as condições de permanência nas unidades prisionais, a que são submetidos os presos (culpados ou inocentes), não. Ainda que estejamos diante da hipótese de uma prisão de um condenado e que este condenado tenha sido submetido a um processo criminal justo, a limitação imposta deveria residir na privação da sua liberdade e não na diminuição da sua dignidade, no comprometimento da sua saúde, na limitação do seu direito/dever de estudar e trabalhar. Para a ressocialização - um dos objetivos da pena - real acontecer, é preciso que o preso tenha ferramentas para, compreendendo a razão de ter o direito fundamental à liberdade restringido, recuperar a confiança do Estado.
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