Mostra reúne trabalhos de Antônio Roseno de Lima no CCBBRJ, no Centro do RioRafael Pereira/Divulgação
Publicado 09/09/2024 00:00
Foi na precariedade da favela Três Marias, em Campinas, que o artista Antônio Roseno de Lima encontrou um caminho alternativo: transformar lixo em arte. Agora, a exposição "A.R.L. Vida e Obra", que já passou por São Paulo, Belo Horizonte e Distrito Federal, chega ao Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB RJ), no Centro do Rio, onde estará aberta ao público até 28 de outubro. Com classificação livre, a mostra convida visitantes de quarta a segunda-feira, das 9h às 20h, a conhecer a arte de Roseno de Lima.

O Migrante nordestino, deixou sua cidade natal, Alexandria (RN), a mulher e os cinco filhos em busca de uma vida melhor em São Paulo, na década de 1950. O pintor tirou da sua própria realidade a inspiração para criar obras que são reflexo da mais pura e encantadora Art Brut, termo francês criado por Jean Dubuffet para designar a arte produzida livre da influência de estilos oficiais e das imposições do mercado da arte.

Roseno expressava seus sonhos e observações do cotidiano através de suas pinturas, muitas vezes utilizando materiais improvisados encontrados no lixo, como pedaços de latas, papelão, madeira e restos de esmalte sintético. Os temas centrais de suas obras eram autorretratos, onças, vacas, galos, bêbados, mulheres e presidentes.
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Arte fora dos padrões

O acervo exposto no CCBB, segundo o artista plástico e curador da mostra, Geraldo Porto, é resultado de sua coleção particular de obras adquiridas ao longo dos anos.
“Quando Roseno faleceu, cerca de 500 obras dele foram descartadas, então as obras disponíveis ao público hoje são poucas”, disse.

Porto enfatiza o esforço de mostrar a obra de Roseno em sua totalidade, reconhecendo a complexidade dos recursos e suportes usados por ele. Para dar ao público uma visão mais completa, algumas obras estão penduradas no teto, permitindo que os visitantes circulem livremente entre elas. O curador ressalta que a arte de Roseno "não segue os padrões tradicionais das escolas de arte", mas busca um caminho próprio que dialoga com movimentos contemporâneos que valorizam identidades marginalizadas e expressões artísticas não convencionais.

Ele narra sua primeira experiência com a arte de Roseno em 1988, durante uma exposição coletiva de artistas naïf no Centro de Convivência Cultural de Campinas. Ele se sentiu profundamente tocado pela "singularidade de sua pintura", particularmente por um quadro que representava um carro de boi pintado sobre duratex, com esmalte sintético, rodeado por palavras e frases. "A pura, crua e comovente linguagem de sua pintura me seduziu", relembra Porto. Esse encontro inicial despertou seu interesse não apenas pela arte de Roseno, mas também pela pessoa por trás dela: “Tive a nítida impressão de estar diante de um artista raro” — um homem cuja vida difícil e humilde, marcada por solidão e resiliência, tornava sua expressão artística ainda mais impressionante.

O artista plástico acredita que é "impossível separar a vida da obra" de Roseno, razão pela qual a exposição no CCBB está dividida nos eixos de vida e obra, proporcionando ao visitante um mergulho profundo no contexto biográfico do artista. “Conhecer o contexto biográfico dele faz toda a diferença para a apreciação completa da exposição”, salienta. A escolha de usar a assinatura abreviada "A.R.L." é, segundo Porto, uma forma de honrar Roseno, que via sua capacidade de assinar o próprio nome como um símbolo de superação do analfabetismo.

Legado que inspira e emociona

"O que mais me atrai na obra do Antônio Roseno, com certeza, é o aspecto gráfico dos desenhos e das pinturas que ele faz. Os traços bem marcados, as cores chapadas, a paleta de cores. Eu acho que ele consegue transformar coisas e pessoas, quem ele está retratando, em figuras icônicas", comenta o artista visual e admirador das obras do pintor, Victor Epifanio, 47 anos.

Epifanio recorda que teve o primeiro contato com as obras de Roseno no acervo do professor Geraldo Porto, na Unicamp, na galeria de artes localizada embaixo da biblioteca central. Lá, ele teve a oportunidade de ver uma exposição de fotos e quadros que o impactou profundamente. Entre as obras de Roseno, Victor conta que tem uma preferência particular: “A minha obra favorita, com certeza, é uma das versões do ‘Bêbado’ que ele faz, e tem escrito no chapéu dele ‘o Bêbado’, com a assinatura do Antônio e a marca do Brasil. Com certeza é uma das obras que eu mais gosto.”

Ele possui uma reprodução em serigrafia dessa obra em sua casa e compartilha que seu filho de 8 anos, ao reconhecer a obra em um banner gigante na fachada do CCBB, ficou impactado: "Acho que ele não tinha dimensão da obra e ficou muito feliz de ver a obra. Foi muito legal porque foi a primeira vez que ele viu algo que tinha em casa identificado na fachada."

Ao longo dos anos, o trabalho de Roseno tornou-se uma referência para Victor, que sente que essa influência se manifesta em sua própria preferência por cores vibrantes e contrastantes em suas criações como artista visual. Além da estética, ele admira a persistência de Roseno em produzir arte, independentemente das circunstâncias. "O que me inspira é isso: ser uma força criativa imparável", reflete ele, observando como o desejo de Roseno de se expressar e criar transcendeu desafios materiais e pessoais.

Pedaços da Alma e da Vida

Entre pinturas e fotografias, a mostra é dividida em seis núcleos e reúne cerca de 90 trabalhos, além de instalações digitais criadas a partir da produção de Roseno. A exposição, que ocupa o segundo andar do CCBB Rio, apresenta um panorama completo das diversas facetas do artista. Na primeira seção, "O Bêbado", vislumbramos as raízes de A.R.L. em sua arte, em que se destacam cores chapadas, sem meios-tons ou efeito de claro-escuro, e o uso prolífico de palavras. Em "Recortes da Cidade", é possível mergulhar nas aspirações e fantasias do artista, onde ele se retrata em notas de dinheiro, em casas bonitas, coloridas e com luz elétrica, além de prédios modernos e fábricas onde sonhava trabalhar.

Na seção "Presidentes" figuram fatos históricos e personalidades notáveis como Afonso Pena, Nilo Peçanha, Getúlio Vargas, Mário de Andrade e Santos Dumont, seu maior ídolo. Já em "O Fotógrafo", temos reflexos de sua grande paixão, o ofício que aprendeu aos 35 anos, em São Paulo, e tentou manter vivo no interior, mesmo depois de fechar o estúdio por falta de recursos. “Frutos, Flores e Animais” traz composições de galos, sapos, cavalos, gatos, capivaras e onças, ou ainda quadros com traços quase "picassianos" de vacas. "Mulheres e Santas" completa o passeio pela alma criativa de Roseno, um admirador que gostava de retratar mulheres e que seguiu homenageando-as em forma de sereias ou à imagem de Nossa Senhora Aparecida.

A exposição no CCBB também inclui reproduções em 3D e instalações multimídia, proporcionando uma experiência sensorial rica e acessível para diferentes públicos. Como parte do programa de inclusão social, a mostra traz QR Codes nas fichas de identificação de todos os quadros, possibilitando a audiodescrição de cada um deles. Outra iniciativa de acessibilidade é a leitura tátil de três telas reproduzidas em MDF, com texturas variadas: “Bêbado com Cigarro I” (1986), que traz uma das representações mais emblemáticas da carreira de Roseno, um homem com três fileiras de orelhas, sobrancelhas, olhos, narizes e bocas, cada uma com um cigarro entre os lábios; “O Galo é Marido da Galinha I” e “Abacaxi”, que também estão entre os temas mais recorrentes do artista.

“Estamos tratando de um artista que lidou, a vida inteira, com dificuldade de inclusão e validação. A disponibilização das reproduções em 3D, com obras que podem ser tocadas e que têm estímulo visual forte para aqueles com baixa visão, permitem uma participação diferenciada na experiência da exposição. Além disso, a exposição possui sons, apresentados através das instalações multimídias, que também proporcionam ao visitante uma experiência sensorial ampliada. Acreditamos que essas ações não apenas enriquecem a experiência, oferecendo uma forma alternativa de interação com a arte, mas também ajudam o público em geral a refletir sobre as necessidades e experiências de diferentes públicos, a importância da acessibilidade em espaços culturais e incentiva uma maior sensibilidade em relação às diferentes formas de percepção e apreciação da arte", acrescentou o curador da exposição.
Serviço:
“A.R.L. Vida e Obra” de Antônio Roseno de Lima
Curador | Geraldo Porto
Local: Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro
Endereço: Rua Primeiro de Março, nº 66 – 4º andar - Centro, Rio de Janeiro/RJ
Período: 04 de setembro a 28 de outubro de 2024
Funcionamento: De quarta a segunda, das 9h às 20h (fecha às terças).

Contato: (21) 3808 2020 | ccbbrio@bb.com.br
Acesso: Gratuito, mediante retirada de ingresso na bilheteria física do CCBB Rio ou no site bb.com.br/cultura
Classificação Indicativa | Livre
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