Publicado 27/09/2024 12:06
Rio - Tradição e fé se encontram todos os anos no subúrbio do Rio durante a celebração de São Cosme e São Damião. Nesta sexta-feira (27), católicos e praticantes de religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda, pedem por cura e proteção em missas e cerimônias religiosas, mas também agradecem às bençãos recebidas e cumprem promessas com a distribuição de doces para crianças. Ao longo de todo o dia, famílias percorrem várias ruas dos bairros cariocas para oferecer e receber as guloseimas.
PublicidadePara muitos devotos, o dia começou com missa na Paróquia de São Cosme e São Damião, no Andaraí, Zona Norte. A igreja recebe dezenas de fiéis desde o início da manhã, como Vânia Maria Flor, de 63 anos, que se tornou devota quando a filha nasceu, há 42 anos, e agradeceu pela vida da família. A idosa conta que passou adorar os santos mais depois de ter tido uma promessa atendida. Um dos seus netos tem Transtorno do Espectro Autista (TEA) e tinha dificuldades para aprender a ler e escrever. Acometida por um câncer, ela pediu para que visse ele alfabetizado antes de morrer. Além de sua cura, o rapaz, hoje com 18 anos, superou suas limitações e participou das Olimpíadas de Matemática.
"Eu sou espírita e devota de São Cosme e São Damião desde a minha filha, há 42 anos eu trago ela, então vira uma tradição. Eu sou muito apegada a Cosme e Damião, às crianças, às promessas que a gente faz e eles sempre atendem a gente, e aproveito e pego doce junto com eles (netos). Eu venho aqui há muitos anos, assisto a missa com minha filha e meus dois netos de 18 e 4 anos. Eles adoram, chegam em casa cheios de doces, haja vasília para guardar. No final do dia eu falo: 'chega de doce, para de pegar doce', brincou Vânia.
O dia também é marcado por memórias familiares para alguns católicos como Jennifer de Paula, de 39 anos, que aprendeu a tradição com a mãe. Emocionada, a professora disse que a viu distribuir doces por conta de uma promessa por sua saúde e, além de seguir seus passos, quer guiar os filhos pelo mesmo caminho.
"Eu comecei a dar doce porque a minha mãe dava, porque prometeu que se eu melhorasse da bronquite asmática ela ia dar doce. Quando eu fiquei adulta, eu mantive a tradição, sempre dou saquinhos. Conheci essa igreja que me emociona muito, que a minha mãe em vida não conseguiu conhecer, e todos os anos eu venho com os meus filhos, a gente agradece sempre, agredeço pela saúde dos meus filhos", contou. A professora ainda destacou a importância de manter tradições como as do dia de São Cosme e São Damião vivas.
"Isso é uma cultura carioca, o doce não representa só o açúcar, ele traz a doçura da criança, é o fato de você contar com a inocência de alguém que te dá algo sem querer nada em troca, eu acho que é isso que falta hoje em dia. Que São Cosme e São Damião adoce o coração de todas as crianças e dos pais que correram atrás de doces quando eram crianças. O que vale é a alegria de todas as crianças, agregada à fé. Não deixem essa cultura morrer".
Comprovando que a celebração dos santos gêmeos atravessa gerações e se tornou uma verdadeira tradição das famílias cariocas, Kailany Polidoro, de 22 anos, levou o irmão e primos mais novos para assistirem a missa. Após o culto, eles permaneceram perto da igreja para pegarem os doces distribuídos por pessoas e carros que passavam em frente à paróquia.
"Eu fiz uma promessa de sempre vir à igreja para agadecer, porque eu sei que, de alguma forma, eles sempre me ajudam muito. Eu venho todos os anos e quando eu não venho sozinha, eu encontro com minha mãe, minha tia na rua pegando doces. É um dia muito importante, até porque a gente vê a alegria das crianças. É uma tradição de família, minha mãe e minhas tias pegaram, eu peguei desde nova e agora são eles", declarou a jovem.
Já a empresária Eloá Maria de Alvarenga Rosa, de 39 anos, apreendeu com o pai que a distribuição das guloseimas é uma forma de agradecer às bençãos alcançadas, como aconteceu com ela mais de uma vez, quando viu a mãe vencer a covid-19 e conquistou sucesso profissional. Por isso, ela esteve na paróquia do Andaraí nesta sexta-feira para agradecer a São Cosme e São Damião e alegrar o dia de várias crianças.
"É uma tradição familiar, eu dou doces todos os anos, meu pai dava doces. Eu sou católica praticante e é um dos meus santos de devoção. Em 2022, quando minha mãe ficou 15 dias internada na UTI com covid e, no dia que eu estava aqui, no dia 27 de setembro, foi quando ela teve alta. Eu fiquei mais devota ainda, todo ano eu venho, todo ano eu dou doces. São santos muito milagrosos. Eles me ajudam nos meus negócios, meu empreendimento foi com a graça de São Cosme e São Damião e todos os anos eu distribuo doces. Esse ano eu vou distribuir na minha loja, que foi uma benção de São Cosme e São Damião", afirmou.
Para os católicos, o dia de São Cosme e São Damião passou a ser celebrado em 26 de setembro. A mudança na data aconteceu por conta de São Vicente de Paulo, já que 27 é o dia em que o santo morreu, segundo o calendário litúrgico. Como não há informações precisas sobre quando os gêmeos morreram, a Igreja alterou a comemoração. Nesta quinta-feira (26), a Paróquia dedicada aos santos realizou missas de celebração. As homenagens continuam nesta sexta-feira, com cultos de hora em hora até às 20h e uma procissão às 16h.
"A devoção aos santos é um apoio que nós encontramos mediante as necessidades do dia a dia. O homem, por si, não consegue viver sem Deus, mas às vezes a gente tem a ideia de um Deus que está lá longe no céu. Os santos nos aproximam de Deus, porque eles são homens como nós, então a figura dos santos é sempre algo reconfortador, principalmente para aqueles que sofrem com uma doença, um desemprego, problemas familiares. Então, os santos são aquelas imagens de alguém próximo de nós, mas, ao mesmo tempo, próximos de Deus. A importância é essa, lembrar que a gente tem uma conexão com Deus e que Deus vem ao nosso encontro através dos santos", apontou o padre Walter Peixoto.
Na porta da igreja, dezenas de fiéis, moradores do Andaraí e de comunidades próximas se reuniram para pegar os doces. A diarista Lilian de Freitas Feliciano, de 34 anos, levou três dos cinco filhos e outros três vizinhos para garantirem seus saquinhos. Ela relata que as crianças contam as horas para o dia de São Cosme e Damião chegar e fica com elas no local até a última missa do paróquia.
"Eu sempre vim aqui e meus filhos gostaram, então a gente vem todos os anos. Virou tradição de família (...) A gente fica aqui até a última missa, eu venho para assistir a primeira missa e depois ficamos pegando doce com as crianças. Eu sou devota de Nossa Senhora Aparecida, mas eu gosto de vir na missa de São Cosme e São Damião. Os meus filhos ficam com ansiedade, contando os dias para vir".
Busca por doces leva famílias para as ruas
Como em todos os anos, o dia de São Cosme e São Damião é marcado por ruas cheias de famílias preparadas para encherem suas bolsas e mochilas com guloseimas. Para alguns, a busca pelos doces se torna uma verdadeira caça ao tesouro que percorre vários locais, atrás dos pontos com maior fartura. Junta de um grupo com dois adultos e cerca de 20 crianças e adolescentes, a operadora de loja Kethlen Ana, de 23 anos, começou a peregrinação na Praça Xavier de Brito, na Tijuca, também na Zona Norte.
"A gente vem todo ano, desde pequenos e foi passando de geração, passou da minha mãe para mim, de mim para a minha filha. Vem todo mundo, os amigos, família pegar doce. Nessa data, todo mundo vira criança para pegar doce (...) A gente sempre anda, fica aqui (na Praça Xavier de Brito), daqui a gente vai para a (Praça) Nobel (no Grajaú), de lá vamos para outros lugares. A gente vai virando onde está dando mais doces. Cada ano fica mais fraco, na minha época, eu já estaria com a segunda mochila cheia", pontuou a operadora de loja.
A Praça Xavier de Brito também é o lugar favorito de Joelma da Silva Ribeiro, de 57 anos, que costumava ir com os sete filhos pegar doces no local, durante a infância. Moradora do Morro da Formiga, comunidade no bairro, ela levou os netos pela primeira vez para ganharem seus saquinhos, nesta sexta-feira. A avó contou que quando era criança, não teve oportunidade de participar da tradição, mas que se sente grata por poder acompanhar a família no dia de São Cosme e São Damião.
"Todo ano estamos aqui. Eu vinha com os meus filhos, mas os filhos cresceram, e agora estou vindo com os netos. Quando eu era mais nova não tive essa oportunidade (de pegar doces), mas eu fico feliz, é uma tradição gostosa, deles correndo para pegar os doces, é a felicidade deles. Não é a mesma coisa que comprar um doce e dar, então, eu me orgulho de estar com saúde para trazer os netos e ver a felicidade deles. Estou muito feliz de estar aqui com eles".
Festa celebra santos e infância
Há 30 anos, Alexandre Souza, 50, promove uma festa na Rua Doutor Bulhões, no Engenho de Dentro, Zona Norte. A celebração começou bem cedo nesta sexta-feira e se estende até às 16h, oferecendo, além dos tradicionais saquinhos, cachorro-quente, algodão doce, churros, macarronada e refrigerante. As crianças ainda podem se esbaldar com pula-pula, sorteios de brinquedos, shows e banho de mangueira. Devoto dos santos gêmeos, o empresário diz que começou apenas com a distribuição de doces na rua, mas que decidiu tornar a data em algo maior, dando início à festa que celebra São Cosme e São Damião e a infância.
"A importância (dessa festa) é a fé que a gente tem e o sorriso de todas as crianças. É um momento muito gratificante para nós que somos religiosos. Eu iniciei aqui na rua só distribuindo saquinhos de doce, mas a coisa foi crescendo e eu achei melhor, pela segurança, trazer esse movimento, fechar a rua, colocar guarda municipal, banheiro químico. Tem distribuição de diversos lanches, tem sorteio de bicicleta, vai ter a Patrulha Canina para as crianças".
Alexandre conta ainda que tem ajuda de vizinhos do bairro para organizar o evento, mas que até moradores de outras cidades comparecem todos os anos. "Com a ajuda de todos os moradores, a gente consegue organizar. Vem muita gente de fora do município do Rio, pessoas que são não só espíritas, mas evangélicos também participam, porque Deus é um só, é único. É isso que vale para mim, a felicidade das crianças e comemorar a data".
Moradora do Engenho de Dentro há 40 anos, Sandra Miceli, 43, brinca que a data é como um feriado na região e levou o sobrinho que vive na Praça Seca, na Zona Oeste, para se divertir, já que segundo ela, o bairro não tem muitas atividades nesta data. "Já é uma tradição do bairro, hoje é o dia que as crianças não vão à escola, a gente já avisa à professora, porque é uma forma de manter a tradição e criar memórias afetivas positivas nas crianças, porque a gente está precisando disso", disse.
Mãe de uma adolescente portadora de síndrome de Down, a vendedora Adriana Trugano, 53, diz que a filha frequenta a festa desde que era muito pequena. "Ela fica super feliz quando vem, ela ama. Pipoca, algodão doce, tudo que é de criança ela ama, já está com 16 anos, mas é meu 'bebezão'. Eu acho muito legal porque todos os vizinhos ajudam, as crianças ficam loucas esperando. É tudo muito organizado e valoriza o bairro. É um bem para a sociedade e para a comunidade que desce para ter um dia de alegria. Todo mundo respeita os especiais, todo mundo acolhe", declarou.
Depois de dois anos sem comemorar, Magna Pimentel, de 43 anos, fez questão de levar o filho de 10 anos para brincar este ano e elogiou a festa. "Eu gosto muito, porque é muito difícil ter alguma coisa para as crianças aqui no bairro, então, eles ficam contando os dias para chegar o dia de hoje e eles passam o dia todo aqui. Aqui tem os brinquedos, tem os lanches, o almoço. É muito bom".
Em seu segundo ano na celebração com a filha Eva, a dona de casa Fernanda Oliveira, 30, descreveu a festa como um momento de diversão para a família. "É um momento de lazer acessível, é uma festa democrática, para todo mundo, mesmo. Eles dão doce, comida, refrigerante. A minha filha adora, já vem logo para brincar no pula-pula que ela ama. Aqui é muito família, o pessoal vem para se divertir, mesmo, não vem com nenhum outro tipo de intenção", explicou.
Sincretismo religioso
Na tradição católica, Cosme e Damião eram irmãos gêmeos e médicos, que exerciam a profissão sem cobrarem nada para a população. Missionários, eles foram perseguidos pelo imperador romano Diocleciano e acusados de serem inimigos dos deuses romanos e de usarem artifícios para disfarçar as curas. Por volta de 300 d.C, acabaram decapitados.
Já não religiões de matriz africana, São Cosme e Damião representam os orixás Ibeji, também gêmeos e protetores das crianças. A associação acontece porque os escravizados buscavam por santidades cristãs que tivessem características parecidas com as divindades que acreditavam, já que essa era a única forma que poderiam continuar professando a própria fé, proibida pelos senhores de engenho.
*Colaborou Rachel Siston
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