A geriatra Ana Claudia Quintana Arantes afirma que é importante falar sobre a morteArquivo pessoal
Publicado 03/11/2024 00:00 | Atualizado 03/11/2024 21:16
"A única certeza que temos na vida é de que um dia iremos morrer". Provavelmente, quem está lendo essa matéria já ouviu ou falou esse antigo ditado. Afinal, a morte, como li uma vez, tem boa memória e não se esquece de ninguém. Ela está sempre à espreita rondando a todos das mais variadas formas como atropelamentos, acidentes, doenças e assassinatos.Se todos somos finitos e isso é uma constatação, por que não conseguimos de jeito algum enfrentar a partida de familiares e amigos de uma forma mais leve? No livro A morte é um dia que vale a pena viver, da escritora e geriatra Ana Claudia Quintana Arantes, é possível ver a dificuldade com que as pessoas lidam com a morte de pessoas queridas e suas consequências. Em entrevista ao jornal O DIA, Ana Claudia Quintaes Arantes, discorre sobre o assunto.
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O DIA: Qual a importância de se viver o luto?
Ana Claudia Quintana Arantes: Na verdade, a gente não tem escolha de viver ou não viver o luto. É um processo que se inicia no dia da morte de alguém que tem conosco um vínculo significativo. O rompimento desse vínculo desencadeia o processo de luto. O que tem de diferente é a forma como você vai viver o luto. E isso vai depender da qualidade, da intensidade da relação que havia com a pessoa que faleceu. A importância de você encarar esse processo de olhos abertos e de coração aberto, mesmo que dilacerado, é que vai te levar a uma regeneração do teu sentimento em relação à perda. Você redireciona o vínculo concreto que havia, que foi rompido para a construção de um vínculo simbólico: A pessoa, a biografia dela, a história dela com você, o sentimento, a relação permanece dentro de você, na sua história.
O DIA: Como a pessoa que fica, seja mãe, pai, filho, marido, esposa, irmãos e amigos deve fazer para passar de forma mais leve por esse período pós morte?
Ana Claudia Quintana Arantes: A importância disso é que a pessoa que fica, seja mãe, pai, filhos, irmãos e amigos, quando eles aceitam viver o luto de forma consciente, sem evitar, sem lutar contra ou sem se apegar nesse sentimento de dor, a gente atravessa esse período não de uma forma mais leve, mas de uma forma mais potente, que te dá mais controle da situação. Quando você decide mergulhar na experiência desse afeto tão dolorido, você percebe que é capaz de atravessar,  não se amedronta. Então, não é que traz mais leveza para o processo, mas você acredita mais que é capaz de passar por ele.
O DIA: Se todos sabemos que a finitude é certa, por qual motivo a maioria das pessoas não lida bem com a morte e desenvolve, inclusive, depressão e outras doenças afins?
Ana Claudia Quintana Arantes: A gente não lida bem com a perda e com a morte porque nós não lidamos bem com a qualidade das nossas escolhas no nosso tempo. Se a gente tivesse mais maturidade para lidar com essa clareza de que o tempo é finito, de que temos um tempo e esse tempo acaba, e as pessoas que a gente ama têm um tempo e que também acaba, teríamos dedicado mais intensidade de presença para o dia a dia, para o momento presente, para a qualidade das relações. Porque é isso que vai ficar, é a lembrança daquilo que a gente viveu. Então, quando você não vive aquilo que poderia ter vivido pode ir para um espectro de adoecimento emocional. E aí, realmente, você irá colocar os dois pés numa doença como a depressão.
O DIA: Quem não morre cedo, envelhece e vai vendo a morte de outras pessoas, o que acaba deixando pessoas tristes e angustiadas. Para o idoso, esse processo de luto é mais difícil?
Ana Claudia Quintaes Arantes: Se a gente olhar o envelhecimento como uma coletânea de perdas será mais complexo viver o nosso envelhecimento. Se a gente não morre cedo,  vai envelhecer e vivenciar perdas e elas não são só nossas. Então, também esse espaço de: Ah, eu perdi meu amigo, minha mãe, meu pai, meu irmão, minha esposa, meu companheiro, esse eu perdi passa a ser nós perdemos porque muitas vezes temos companhia para vivenciar as perdas. O que a gente não tem no envelhecimento é o respeito pelo nosso coração dolorido por perder porque as pessoas mais novas acham que serão novas para sempre. Elas não respeitam a experiência difícil do envelhecimento, com perdas tangíveis das pessoas e as intangíveis também. Você perde funções, tipo audição, visão, mobilidade, e isso vai fazendo com que tenha que aceitar essa experiência. E essa aceitação não é uma coisa obrigatória, você pode não aceitar. E se você não aceitar, terá que vivenciar a perda e mais a dor de não aceitar. Não é uma coisa muito boa de fazer, você ficar com o sofrimento de ter perdido e mais o apego ao sofrimento de não ter mais.
O DIA: A senhora acredita que haja uma forma para que nossa sociedade conviva de uma forma melhor com a morte? Qual seria?
Ana Claudia Quintana Arantes: Eu acredito que a forma mais humana que a gente poderia encontrar na nossa sociedade para conviver melhor com a morte seria conversar a respeito. A gente não ter vergonha, não ter medo de falar sobre a morte, não ter medo de falar sobre a fragilidade, parar com a bobagem de que falar sobre isso é ruim, mórbido ou atrai, como eu costumo dizer, Falo disso há 30 anos, não morri ainda, certamente vou morrer, mas não vai ser por ter falado sobre o assunto. E eu tenho a esperança de que eu possa morrer melhor porque falei sobre isso. Então o caminho vai ser educação: A educação para a vida, a educação para a morte. É o caminho da gente fazer uma revolução da consciência do cuidado.

'Na morte não há hierararquia' 

Vários grupos como Vamos Falar Sobre o Luto, Programa de Acolhimento ao Luto, Grupo de Apoio ao luto, entre muitos outros presenciais ou  online, foram criados com o objetivo de dar um suporte para quem está passando por uma situação tão delicada.

O Projeto Vamos Falar Sobre o Luto existe desde 2016 por iniciativa de sete amigas (jornalistas e publicitárias) que criaram uma plataforma digital para as pessoas enlutadas expressarem suas dores e saudades e para quem convive de perto com elas poder ajudá-las. De acordo com a jornalista Cynthia de Almeida, uma das fundadoras, o propósito é falar e deixar as pessoas falarem. "A gente se reuniu em torno de perdas pessoais. Eu perdi um filho há 23 anos, outras amigas também tiveram perdas e entendemos que precisamos falar sobre o assunto. Na nossa sociedade, o luto é silenciado. Nossa cultura é avessa ao sentimento de dor. Criamos essa plataforma para que as pessoas pudessem contar e ter suas histórias publicadas". Também são fundadoras do grupo Rita Almeida, Amanda Thomaz, Gisela Adissi, Laura Capanema, Fernanda Ferraz e Mariane Maciel.
Cynthia conta que hoje, além do site (vamosfalarsobreoluto.com.br), o projeto tem um perfil no Instagram (vamos_falar_sobre_o_luto), e um podcast com o mesmo nome, com sete episódios na primeira temporada. "O podcast foi muito bem-sucedido, é uma plataforma intimista, muito propícia ao tema tão delicado do luto. Estamos buscando patrocínio para fazer uma segunda temporada". Para a profissional, não existe fórmula de elaborar o luto. "Aprendemos nesse projeto que cada um tem a sua forma de lidar, seja buscando ajuda terapêutica, mergulhando no trabalho, chorando, falando ou não. O melhor é saber que não tem um jeito certo ou errado. A morte é nossa única certeza. É paradoxal: sabemos que ninguém escapa da morte, mas ninguém quer falar de luto".
Mãe de outros dois filhos, ela sabe que o reconhecimento social da perda de um filho é muito maior em relação a outros lutos. Mas não se deve comparar ou subestimar qualquer dor. "Na morte, não há hierarquia. Pais que perderam seus filhos acham que a dor é insuportável e incomparável. Outras perdas e lutos são devastadoras", diz ela, que gosta de frequentar cemitérios. "Gosto do astral. Lá temos a consciência do que nos espera. É um lugar interessante para refletir sobre a finitude. O filósofo Sêneca, por exemplo, meditava em cemitérios",
Um confessionário diferente
Na plataforma Vamos falar sobre o luto, a pessoa interessada pode ter seus sentimentos expressos em forma de escrita num 'confessionário’. "Nós lemos as histórias enviadas, respondemos e entramos em contato. Se acharmos um caso muito emblemático para ser compartilhado podemos entrevistar o autor ou pedir para a pessoa escrever sua história. Mas o enlutado precisa ter vontade. Algumas não querem escrever, mas gostam de ser ouvidas. Só isso às vezes já é restaurador’’, afirma Cynthia.
Ela acredita que atualmente estamos falando mais sobre a morte, de uma forma menos censurada e constrangida. "Falar sobre luto, podcast a respeito, livros, perfis nas redes sociais. Tudo isso é muito novo e talvez tenha sido estimulado na pandemia. A morte não é uma escolha, mas é uma certeza. Falar dela é a evolução da sociedade ocidental que sempre achou que poderia de certa forma driblá-la com a ajuda da medicina e agora já está mais consciente da finitude".

Resposta natural das pessoas diante de uma perda

Coordenadora do núcleo de acolhimento aos adultos do Programa de Acolhimento ao luto (Proalu), a psicóloga Beatriz Maximino (@beatrizmaximino.psi), explica como é feito o acolhimento para as pessoas que ficam impactadas e fragilizadas quando um ente querido morre. "Aqui no Proalu, nós prestamos serviço pelo SUS no Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo".
Ela conta que o Programa começou em 2020, na época da pandemia, quando o número de mortes subia diariamente. "Desde 2020 até o presente momento já atendemos por volta de 780 pessoas e nesse tempo todo foram 4.680 atendimentos realizados. Primeiramente é oferecido o acolhimento de seis encontros e, se for observado durante o processo que a pessoa precisa seguir falando e elaborando sua perda, são oferecidos mais dez, totalizando 16 em formato de psicoterapia breve, um encontro por semana com a duração de 1 hora. As crianças são atendidas de forma presencial no CAISM Vila Mariana e os adultos, online, podendo ser de qualquer localidade do Brasil".
De acordo com a psicóloga, são 45 terapeutas voluntários realizando os atendimentos. "A forma como a pessoa irá reagir diante da perda, vai depender de como aconteceu a morte, e o vínculo que tinha com quem morreu. Quando a morte é traumática, por exemplo, pode impactar diretamente como a pessoa irá lidar com a perda, podendo evoluir para um Transtorno de Luto Prolongado. Também é importante entender que ao receber a notícia da morte de uma pessoa querida, se tem a resposta do luto agudo, onde sentimentos de tristeza, abandono, angústia e culpa podem aparecer".
Segundo Beatriz Maximino, os principais serviços que trabalham com luto mundialmente utilizam o Modelo de Processo Dual de Stroebe e Schut (1999), que oscila e é dinâmico, e nos mostra que hora a pessoa está orientada para perda e hora para restauração, podendo ter diversos sentimentos num único dia, que vão e voltam, como um pêndulo mesmo. O modelo Dual ajuda a integrar e elaborar a perda em sua vida e sua história.
"Nós aqui do Proalu, da Universidade Federal de São Paulo, temos a função social e a responsabilidade de ensinar as pessoas a viverem e se apropriarem do processo de luto delas de forma adequada. O processo de luto não é vivido em fases, pois luto não se supera, é vivenciado e integrado ao longo da vida da pessoa", explica Beatriz.
O Proalu oferece psicoeducação para morte e luto pela sua página no Instagram @proalu.unifesp.

‘Foi a primeira vez que eu senti angústia na vida’

A influencer Amanda Pieranti perdeu o único irmão há 17 anos de acidente de motocicleta em Vila Isabel, na Zona Norte do Rio. O tempo passou, mas ao dar este depoimento ela se emociona e diz que muitas vezes se sentiu culpada por continuar vivendo enquanto Leonardo, o caçula, não estava mais entre nós. "Ele faleceu no dia 4 de setembro de 2017 e eu faço aniversário dia 9 de setembro. Foi muito marcante para mim: um dos eventos mais tristes da minha vida e cinco dias depois eu estava tendo que comemorar o meu aniversário E eu pensava: Como é que eu vou comemorar a vida se há pouco o meu irmão morreu? Não encaixava, era estranho, incômodo. Aquilo era desconfortante para mim. Então a escrita me ajudou muito porque nas datas de morte e no aniversário dele (29 de dezembro) eu escrevia no facebook e depois no Instagram como desabafo".
Além de buscar auxílio nas letras, Amanda resolveu fazer terapia em busca de uma ajuda direcionada, e hoje continua tendo sessões com o objetivo de se conhecer mais. "Ajuda muito no processo de luto. Eu sou uma Amanda antes da terapia e pós-terapia. Foi um passo inicial e faço terapia até hoje. Não me vejo sem terapia, porque eu gosto e me ajudo em vários momentos. Passei a lidar melhor com as situações da vida, com os meus sentimentos, porque eu comecei a fazer terapia enquanto estava de luto".
A influencer afirma que buscou ferramentas para enfrentar a dor da perda do jeito que foi possível. "Tenho certeza de que eu vivi o luto da forma que eu tinha que viver. A terapia me ajudou a não mergulhar numa depressão profunda. Eu dei tempo ao tempo, no meu tempo, O luto tem um prazo, não tem um tempo definido para você enfrentá-lo. Mas eu passei pelo processo. Foi a primeira vez que eu senti angústia na vida".

Especialistas falam sobre o tema

Para o psicólogo Ricardo Santos, vivenciar o luto é fundamental para o processo de equilíbrio emocional. "Quando perdemos alguém querido, precisamos reorganizar nossas emoções e senti-las de forma plena. A tristeza, a raiva e a saudade fazem parte desse processo, e vivê-las ajudam a evitar bloqueios emocionais futuros. O luto também promove uma adaptação à nova realidade; sem a presença daquela pessoa no dia a dia, a rotina fica diferente. Se esse processo não for bem elaborado, as emoções reprimidas podem afetar a saúde física e mental, retardando a aceitação".
Ele afirma que são cinco as principais etapas no processo: Negação: "Eu não acredito que ela morreu"; Raiva: "Por que foi acontecer logo com ela"; Culpa: "Eu poderia ter feito mais", "Se eu tivesse chegado antes ela estaria viva"; Depressão: "Sem ela minha vida acabou"; Aceitação (Reconhecer que todos nós vamos partir um dia): "Agora ela está em paz, descansando”. Ele diz que embora nem todas as pessoas passem por essas etapas, normalmente acontecem.
Da mesma opinião compartilha Dalila Satalla, psicóloga e gerente de Psicologia da Rede Hospital Casa. "Lidar com o luto é importante devido ao processo de aceitação, enfrentá-lo ajuda a aceitar a realidade da ausência da pessoa. Permitir-se sentir e expressar a dor, evita que emoções não processadas se transformem em problemas psicológicos a longo prazo. Ignorar o luto pode levar a complicações, como depressão e ansiedade".
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