Publicado 24/04/2022 01:00
Uma prática corriqueira na administração pública brasileira expõe de forma clara a maneira peculiar com que o Estado brasileiro (no nível federal, estadual e municipal) trata a administração das próprias contas. O nome oficial da prática é “Restos a Pagar”. Entre os fornecedores, porém, ela é chamada por nomes bem menos inocentes do que esse.
Este ano, o Orçamento da União reservou um total de R$ 233 bilhões para o pagamento de despesas que, a rigor, deveriam ter sido pagas nos anos anteriores. O enredo dessa tragédia é conhecido. Ele começa quando algum órgão público de qualquer nível administrativo, devidamente autorizado pelos superiores e depois de seguir os trâmites legais, contrata uma obra qualquer.
O serviço pode ser a pavimentação de uma estrada, a construção de um prédio ou a reforma de um hospital, não importa. Também vale para a prestação de serviços a órgãos públicos, para a aquisição de medicamentos e para uma série de situações em que algum fornecedor privado fecha um contrato com algum órgão público. A contratação é perfeitamente legal e o serviço é prestado sob a vigilância dos órgãos de controle do Estado. Na hora de pagar pelo que contratou, no entanto, o rigor nunca é o mesmo.
O fornecedor executa e entrega o serviço, mas na hora de receber, precisa se virar para por a mão em seu dinheiro. Atrasos são frequentes não apenas no final, mas em todas as parcelas previstas em contrato. E, ainda que o contratante se dê o direito de cumprir sua parte, o contratado nunc pode sair da linha. Continua com a obrigação de pagar os salários, as tarifas públicas e, principalmente, os tributos que incidem sobre o valor do serviço prestado (e não sobre o valor recebido!). Pior: se não apresentar a Certidão Negativa de débitos fiscais e trabalhistas a cada vez que for que pleitear o pagamento do que lhe é devido, pode perder a esperança de ver a cor de seu dinheiro.
De um modo geral, o que deixou de ser pago num ano é empurrado para o exercício seguinte. Do valor contabilizado como Restos a Pagar no Orçamento da União, pouco mais de R$ 185 bilhões se referem a compromissos que deixaram de ser honrados em 2021 e ficaram para este ano. Os quase R$ 48 bilhões restantes, porém, referem-se a dívidas que vêm de exercícios anteriores.
Quem está habituado aos números superlativos do orçamento federal, que prevê um total de 4,7 trilhões em despesas para 2022, pode considerar os Restos a Pagar uma ninharia. Para as empresas que prestaram o serviço e o financiam utilizando recursos próprios, os atrasos frequentes podem levar à falência.
RESPONSABILIDADE FISCAL
Quem está habituado aos números superlativos do orçamento federal, que prevê um total de 4,7 trilhões em despesas para 2022, pode considerar os Restos a Pagar uma ninharia. Para as empresas que prestaram o serviço e o financiam utilizando recursos próprios, os atrasos frequentes podem levar à falência.
RESPONSABILIDADE FISCAL
A desculpa para atrasos desse tipo é a mesma, seja na esfera federal ou nas administrações estaduais e municipais. Se o pagamento fosse feito, o limite de gastos previstos para o exercício seria ultrapassado e poderia acarretar problemas para o gestor público — que responderia pela quebra do orçamento com base na Lei de Responsabilidade Fiscal. Até aí, tudo bem: nenhum administrador público pode gastar mais do que estava previsto e esse princípio é mais do que correto.
A pergunta é: se não havia dinheiro para pagar, por que o serviço foi contratado? Independente da resposta, o problema é que, para não descumprir uma norma que foi criada para que ande na linha, o poder público não pensa duas vezes antes de empurrar o problema para seus fornecedores.
As consequências disso, além das que pesam sobre a empresa, são mais do que conhecidas. Sabendo que demorarão a receber aquilo que lhes é devido, as empresas prestadoras de serviços ao poder público carregam na mão na hora de apresentar seus orçamentos. Serviços que poderiam ter custos 20%, 30% ou 40% menores caso houvesse a certeza do recebimento em dia acabam saindo por preços bem mais salgados. Quem paga por isso, claro, é o contribuinte que vê o dinheiro dos impostos que recolhe gerar muito menos benefícios do que poderia.
DEZ ANOS DE PRAZO
DEZ ANOS DE PRAZO
Por trás de cada obra pública paralisada no país, dessas que a toda hora são mostradas em reportagens indignadas na TV, existe algum valor que por um motivo qualquer deveria ter sido pago ao fornecedor — mas que ficou adormecido na contabilidade de alguma repartição pública. Alguns desses pagamentos, é claro, deixam de ser feitos por ação de algum órgão de fiscalização e controle.
Os fiscais desconfiam de alguma irregularidade e mandam parar o serviço e interromper os pagamentos até que tudo seja apurado. Não é disso que se trata o problema. A questão são os contratos regulares que não são pagos simplesmente porque faltou de dinheiro em caixa ou para evitar que o teto de gastos seja ultrapassado. A prática é tão usual que o poder público, em alguns casos, se dá ao direito de exagerar na adoção de normas que criam problemas para muita gente.
Veja, por exemplo, o que vem acontecendo na prefeitura do Rio de Janeiro. A lei complementar de nº 235, aprovada no ano passado, autorizou que a prefeitura dividisse os restos a pagar sobre obrigações vencidas entre os anos de 2017 e 2020 (ou seja, todo o período da administração anterior) em até dez anos. Por mais que essa norma ajude a manter as contas da prefeitura em dia, o mecanismo é, no mínimo, discutível.
SOLUÇÃO CRIATIVA
SOLUÇÃO CRIATIVA
Um problema como esse pode ser resolvido sem que se firam direitos nem se desrespeite aquilo que foi combinado em contrato? A resposta é sim. Claro que sim. Incluída no bojo de uma proposta ampla, negociada e aprovada pelas instâncias devidas, poderia ser feita uma emissão de títulos públicos municipais no valor dos restos a pagar. O dinheiro dos títulos a serem emitidos seria utilizado para o pagamento integral das obrigações com os fornecedores privados. O resgate desses bônus seria feito ao longos dos mesmos dez anos previstos para o pagamento dos atrasados com recursos do orçamento.
Alguns poderão dizer que não haveria sentido em se aumentar a dívida pública para o pagamento de obrigações contraídas junto a prestadores privados de serviços. Ver o problema por esse ângulo é um erro: a dívida já existe. A única mudança que haveria com a adoção dessa nova modalidade seria o credor. O titular deixaria de ser a empresa prestadora do serviço e passaria a ser o instituição que adquiriu o título. Simples assim.
É claro que essa modalidade não está prevista em lei e precisa ser debatida e muito bem planejada para que a solução de agora não acabe gerando algum problema mais adiante (como, aliás, é hábito na administração pública brasileira). O que não se pode, porém, é decidir a questão de forma unilateral e impor de cima para baixo uma lei que deixa o credor numa situação difícil. Ou o aceita a condição imposta e espera que seu dinheiro pingue ano a ano em sua conta ou recorre à Justiça em busca de seus direitos.
Seja como for, a questão dos Restos a Pagar e do tratamento que se dá a eles é uma parte pequena de um problema muito mais amplo. O Brasil precisa com urgência encontrar uma maneira de encarar o dinheiro público e passar a utilizá-lo em benefício do conjunto da população — e não apenas da manutenção da própria máquina. Por qualquer ângulo que se observe, é inconcebível saber que mais de 90% do orçamento da União, dos estados e dos municípios são gastos com as chamadas despesas obrigatórias (que, de um modo geral dizem respeito aos salários e ao custeio do serviço público) — ficando menos de 10% para os investimentos necessários em saúde, educação e infraestrutura.
Um artigo recente do professor Modesto Carvalhosa, publicado em diversos veículos do Brasil, estima em certa de R$ 50 bilhões de reais uso de recursos do orçamento em benefício dos parlamentares brasileiros. Esse dinheiro inclui os R$ 26 bilhões das emendas parlamentares, os R$ 16,5 bilhões das chamadas emendas do relator, ou emendas secretas, o R$ 4,9 bilhões do Fundo Eleitoral e os R$ 2,6 bi do fundo partidário. É muito dinheiro.
Isso significa o seguinte: por menos que o Estado brasileiro tenha recursos para manter em dia as obrigações que assume com seus fornecedores (e que, a rigor, só deveriam ser assumidas se a capacidade de pagamento estivesse assegurada) e por mais que a maior parte do bolo orçamentário já esteja carimbada e destinada às despesas obrigatórias, os políticos sempre arrumam uma maneira de tomar para si uma parte cada vez maior do minguado orçamento público. O problema já está identificado e seria bom se fosse encarado de frente. Quanto mais demorar, mais o entulho fiscal que vem se acumulando nos últimos anos ficará pesado.
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