Nuno22maiARTE KIKO
Publicado 22/05/2022 01:00
Aprendemos desde cedo a relacionar nossas escolhas políticas com os valores que acreditamos ser os mais corretos para orientar nossas vidas. Por esse ponto de vista, os princípios que utilizamos para orientar nossas vidas deveriam ser decisivos no momento em que, na cabine indevassável e diante da urna eletrônica, digitamos o número de nosso candidato e teclamos a tecla verde para confirmar o nosso voto.
Se, por exemplo, temos a honestidade como um valor importante, o certo nessa hora seria dar preferência a candidatos (ou candidatas) que tenham ficha limpa e um passado livre de qualquer suspeita de corrupção. Como a mulher de César, não basta que o candidato (ou a candidata) seja honesto (a). É preciso que ele (ou ela) pareça honesto(a).
Se valorizamos o respeito aos direitos individuais como um fundamento que preserva nossos próprios direitos, nossa inclinação deveria ser por candidatos (ou candidatas) que levem a sério esses princípios. Ninguém que não queira ser agredido ao defender seus pontos de vista pode escolher para representá-lo no legislativo ou para governar em seu nome alguém que use de truculência para criticar de forma sistemática as posições alheias uma prática recorrente.
Por mais óbvio que isso pareça, nem sempre orientamos nossas escolhas políticas pelos princípios que acreditamos defender — e muitas vezes relevamos os desvios de conduta em nome de nossas simpatias ou conveniências pessoais. Será que, se passarmos a levar nossos valores em conta ficaremos satisfeitos com o resultado de nossas próprias decisões eleitorais?
A questão é ampla e abre espaço para um debate interminável, que, a exemplo do que disse Cecília Meireles em seu belíssimo poema sobre o ouro, no Romanceiro da Inconfidência, “acende paixões que alastram sinistras rivalidades”. O problema é que, ao observar o cenário à nossa volta e comparar as ideias dos diversos candidatos com aquilo que acreditamos ser o melhor para a política, perceberemos muitas vezes que nossos valores acabam tendo sobre nossas decisões um peso menor do que o pragmatismo. Em resumo, e no final das contas, nenhuma de nossas escolhas políticas parece atender àquilo que acreditamos ser o ideal para nosso país, para nossos filhos e para nós mesmos.
Seja como for, a verdade é que, eleição vai, eleição vem, sempre nos vemos diante do mesmo dilema: ou usamos nossos votos para contemplar nossos valores e abrimos mãos de participar da disputa pelo poder ou escolhemos um candidato que não nos agrada plenamente, mas cuja chance de vitória pode ser a única arma contra a eleição de um nome que contrarie tudo aquilo que nos interessa. Isso já foi chamado de “voto útil”, de “esforço para se evitar um mal maior” e de um monte de nomes.

O “MENOS PIOR”
Deixar que os valores guiem nossas escolhas eleitorais não significa, no final das contas, que teremos à nossa disposição candidatos que pensem como nós e que, uma vez no poder, sigam sem qualquer desvio aquele que consideramos o melhor caminho. Num sistema político complexo e numa sociedade plural como a brasileira, é praticamente impossível para alguém que não seja militante convicto de uma determinada causa votar em alguém que reflita exatamente seu ponto de vista. Isso não nos impede, porém, de sempre estar em busca de um candidato que se identifique com nossos valores. Para encontrá-lo, nunca podemos deixar de refletir sobre o resultado que realmente desejamos alcançar com nossas escolhas políticas.

Essa necessidade, claro, não pesa apenas sobre o eleitor brasileiro. Nas democracias que adotam o sistema presidencialista de governo e que preveem a realização de um segundo turno em suas eleições majoritárias — como é o caso da França, da Argentina e do Chile do Chile e de outras democracias mais ou menos sólidas — sempre haverá um cenário parecido. Como regra geral, vale o princípio de que o primeiro turno é o momento em que cada eleitor se orienta por seus valores e dá o voto ao candidato que mais se aproxima de suas ideias. No segundo turno, é a vez do pragmatismo falar mais alto — o que muitas vezes significa a escolha do “menos pior”.
O problema se dá no momento em que o eleitor, como agora, fica tentado tomar no primeiro turno a decisão que deveria ser tomada só no segundo. A consequência disso é o eleitor acaba, aos poucos, deixando de orientar suas decisões pelos próprios valores e se deixando levar por interesses que não são seus, mas dos candidatos envolvidos na disputa.
Essa situação não é a ideal e quanto mais cedo conseguirmos revertê-la, mais depressa romperemos com a descrença que tem cercado a política brasileira nos últimos anos. E já que os políticos parecem nos dar cada vez menos motivos para confiar neles, cabe a cada um de nós fazer um exame de nossos valores para ver qual deles mais se aproxima daquilo que desejamos para o nosso país. Um bom primeiro passo nessa direção seria fazer um checklist daquilo que consideramos importante antes de decidir a quem dar o voto no dia 2 de outubro.
A lista, claro, precisa contemplar os valores básicos, porém fundamentais, como a honestidade, o respeito aos direitos e a prática dos princípios democráticos. Mas isso não basta. Ela precisa, também, incluir o posicionamento de cada um em relação aos fatos que afetam nosso dia a dia. Tudo aquilo que esteve em pauta nos últimos quatro anos — seja no Brasil, seja no exterior — e que, de alguma forma, afetou nossas vidas deve ser avaliado no momento da escolha.
Os pontos de vista do candidato em relação ao conflito na Ucrânia coincidem com os seus? É justo que seu candidato se apoie na simpatia que tem em relação a um governante ou a um regime político de outro país — seja ele Rússia, Estados Unidos, Cuba ou Venezuela — para relevar atos de desrespeito aos direitos humanos ou agressões a países vizinhos?
As posições do candidato em relação ao tamanho do Estado e às privatizações refletem aquilo que você pensa sobre o tema? As atitudes que ele (ou ela) toma diante da reforma da Previdência ou das reformas das leis trabalhistas vão ao encontro daquilo que você pensa sobre o tema? O que cada político fez quando teve a oportunidade de coibir os privilégios que as categorias mais privilegiadas do funcionalismo público têm no Brasil? Quais são os nossos valores em relação a cada um desses fatos?

PRINCÍPIOS E IDEOLOGIA
Neste ponto, é importante fazer uma observação. Chega a parecer ingênuo falar de valores num ambiente eleitoral movido por decisões cada vez mais pragmáticas — para não dizer interesseiras. Muita gente parece achar legítimo que, por exemplo, que as posições frente à guerra na Ucrânia sejam tomadas a partir dos interesses comerciais do Brasil em relação a Moscou. Por esse princípio, parece legítimo que a agressão russa ao país vizinho não seja condenada pelo Brasil porque isso pode melindrar o autocrata Vladimir Putin e prejudicar nossas importações de fertilizantes e de trigo.
O mesmo vale para a postura em relação a alguns países árabes — que estão livres de qualquer crítica no Brasil porque são grandes compradores de carne e de outros alimentos do Brasil. Ninguém leva em conta, ao poupá-los de críticas nessa hora, que eles também teriam dificuldades para encontrar no mundo outro país produtor que lhes fornecesse alimentos na qualidade, na quantidade e nas condições oferecidas pelo Brasil. O mesmo procedimento é visto, por exemplo, no silêncio ensurdecedor diante das agressões frequentes aos direitos dos cidadãos cubanos e venezuelanos por governos que, por mais ditatoriais que sejam, gozam da simpatia ideológica de grupos importantes da política brasileira.
Esse ponto é fundamental. Na escala de princípios que norteiam — ou deveriam nortear — nossas decisões eleitorais, os valores deveriam ter mais importância do que a ideologia. Afinal, uma agressão aos direitos individuais levada a cabo por um ditador identificado com as causas da esquerda não é mais desculpável do que uma violência semelhante perpetrada por um ditador de direita. O que não podemos, de forma alguma, é permitir que nossas afinidades impeçam que julguemos o político de nossa simpatia com o mesmo rigor com que avaliamos a conduta de seus adversários.
O que se vê, infelizmente, são valores sendo submetidos à ideologia — num cenário em que o eleitor parece estar no meio de uma arena em que é levado a digladiar até a morte com o adversário. A consequência disso é esse clima de confronto permanente que vem se prolongando há algumas eleições e que, no final das contas, pode ser incluído entre as causas de nossa permanência no buraco em que nos encontramos.
Voltaremos ao tema na semana que vem. Por enquanto, precisamos dar mais valor aos nossos valores. Do contrário, estaremos delegando a outros o poder de decidir por nós. E isso não é política. É submissão! 
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