Publicado 13/11/2022 01:00
No atual ambiente da política brasileira, é legítimo imaginar que a eleição presidencial realizada há duas semanas não passou de mais uma batalha de uma guerra que vem sendo travada no país desde 2014 e que essa disputa — que poderia ter se encerrado com a contagem dos votos de 30 de outubro — só terá seu desfecho em 2026. Os vitoriosos e os perdedores vêm agindo como se ainda estivessem no calor da luta e tanto uns quanto os outros parecem incapazes de defender os pontos de vista que consideram corretos sem antes atacar o que consideram erros dos adversários.
É nesse contexto que devem ser entendidas as reações ao discurso feito pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva na quinta-feira passada no Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília. Todo mundo sabe que a espontaneidade é uma marca de Lula e que ele às vezes comete exageros verbais que não indicam necessariamente as medidas que ele colocará em prática mais adiante. Foi assim na semana passada, quando ele perguntou num discurso: “Por que as pessoas são levadas a sofrer por conta de garantir a tal da estabilidade fiscal deste país?”
A frase foi dita num pronunciamento em que Lula reafirmava seu compromisso com a segurança alimentar da população e reafirmava a intenção de buscar já no orçamento do ano que vem os recursos necessário para tomar as providências iniciais de seu programa. Esse compromisso já havia sido anunciado antes, e sem causar qualquer solavanco no mercado, por Geraldo Alckmin, vice-presidente eleito e coordenador da equipe de transição e por outros integrantes do time de Lula. Mas bastou que o presidente eleito dissesse a mesma coisa com seu linguajar habitual para que a Bolsa caísse, o dólar subisse e muita gente começasse a falar em crise antes mesmo da posse do novo governo.
Os grupos simpáticos a Jair Bolsonaro, claro, reagiram a essa declaração com furor idêntico ao dos lulistas que, depois de 2019, criticavam qualquer declaração do presidente sobre o que quer que fosse. E os “analistas” de sempre, ao invés de procurar colocar panos quentes e esperar que as medidas oficiais da equipe de transição sejam tomadas e que o novo ministério seja formado e anunciado, preferiram tomar as palavras de Lula ao pé da letra e agir como se o novo governo tivesse rasgado naquele momento todo e qualquer compromisso com o equilíbrio fiscal. Muita calma nesta hora!
“CAMINHO FÁCIL”
É preciso calma diante das declarações do presidente eleito. Assim como Bolsonaro, ele às vezes se deixa levar pelo entusiasmo e expressa conceitos que, mais tarde, terão que ser esclarecidos pelos assessores. E, assim como os bolsonaristas faziam no passado, agora são os petistas que precisam encontrar explicações para críticas como a do ex-presidente do Banco Central e ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles, para quem Lula ainda está “em modo campanha”. Meirelles disse, ainda, que Lula age como sua sucessora Dilma Rousseff ao seguir o caminho fácil de agradar seus apoiadores mais próximos e desprezar os fundamentos da economia.
A verdade, porém, é que nada no passado de Lula e muito menos no dos economistas que, de fato, fazem a cabeça do presidente leva a crer que seu novo governo será marcado pela irresponsabilidade fiscal. Os tempos são outros e essa turma está cansada de saber que todos os excessos cometidos hoje em matéria de gastos públicos se voltarão contra o próprio governo mais adiante. E o primeiro a querer um governo estável, confiável e capaz de oferecer aos investidores as condições necessárias para o cumprimento dos compromissos de longo prazo assumidos no palanque é o próprio Lula.
O presidente sabe que precisa tomar, agora, as medidas que lhe darão tranquilidade para iniciar seu governo num ambiente menos tenso do que encontraria caso tomasse posse com esse orçamento sem pé nem cabeça que está em discussão no Congresso Nacional para 2023. É mais do que compreensível que ele queira negociar, agora, medidas que lhe garantam uma folga orçamentária que lhe assegure a segurança necessária para iniciar seu mandato sem o risco de, mais tarde, vir a sofrer interpelações judiciais que podem, no limite, encurtar o seu mandato com encurtaram o de Dilma.
Por essa razão, ele discute com o Congresso atual uma forma de assegurar uma suplementação suficiente para cumprir algumas promessas de campanha e sabe muito bem que a melhor hora de fazer isso é agora — quando terá de negociar com os parlamentares eleitos em 2018 e não com os que foram eleitos agora, em 2022, que só tomarão posse no dia 1º de fevereiro.
Esse ponto é importante: por mais que ele negocie agora com os líderes de partidos que não o apoiaram na campanha o apoio parlamentar de que necessita para governar a partir de 2023, ele sabe muito bem que o jogo que terá pela frente neste mandato será muito mais brutal e exigirá muito mais habilidade de negociação do que ele precisou ter há 20 anos, quando tomou posse para seu primeiro mandato como presidente da República.
Só para refrescar a memória, convém lembrar que Lula tomou posse naquele ano chamando de “herança maldita” as contas ajustadas e claras que recebeu do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Havia, claro, algumas providências a tomar para que o país conseguisse crescer e ele foi hábil o bastante para tranquilizar o mercado com a nomeação de Antônio Pallocci para o ministério da Economia.
Atenção! É preciso não confundir o Pallocci sagaz e competente que assumiu a Fazenda em 2003 com o político errático que, mais tarde, se envolveu em escândalos de corrupção. As decisões acertadas e o ritmo eficiente que ele e alguns auxiliares como o secretário de Política Econômica Marcos Lisboa e o Secretário do Tesouro Nacional Joaquim Levy imprimiram no ministério nos primeiros momentos do governo são vistos como a peça-chave para o sucesso do primeiro governo Lula.
OPOSIÇÃO IMPLACÁVEL
OPOSIÇÃO IMPLACÁVEL
Além disso, é preciso reconhecer que em sua primeira passagem pela presidência da República Lula teve pela frente a oposição anêmica e invertebrada que lhe era movida pelo PSDB e pelo DEM. Esses dois partidos pareciam pedir licença para divergir do presidente e, antes que o escândalo do Mensalão viesse à tona em 2005, foram incapazes de criar um único embaraço para o presidente no Congresso.
A situação agora será outra. Para começar, Lula terá que enfrentar a oposição da maior bancada do Congresso, a do PL. Na Câmara, por exemplo, o partido que deu legenda para que Bolsonaro disputasse a presidência da República este ano elegeu 99 parlamentares. Esse número quer dizer o seguinte: com pelo menos 99 deputados dispostos a se opor a toda e qualquer proposta do governo, o quórum qualificado de dois terços para aprovação de emedas à Constituição, que é de 342 parlamentares, terá que ser obtido não entre os 513 integrantes da Casa, mas entre um grupo de 414 nomes. Ou seja, o cenário será mais difícil.
A bancada de oposição que tomará posse, na qual se destacam políticos de perfil tão ou mais bolsonaristas do que os filhos do presidente, deverá ser implacável, impertinente e barulhenta. E, mais do que isso, disposta a fazer uma oposição tão sistemática quanto os petistas faziam contra o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso ou, mais tarde, contra o governo do ex-presidente Michel Temer.
PÉS DE BARRO
PÉS DE BARRO
Quando estavam na oposição, os partidos de esquerda não tiveram votos suficientes para aprovar medidas do seu interesse, mas eram estridentes o bastante para criar constrangimentos e dificultar a vida no governo. No dia 11 de julho de 2017, para citar apenas um exemplo, senadoras da bancada de oposição a Temer protagonizou uma das cenas mais grotescas e antidemocráticas já vistas no plenário do Congresso Nacional.
Gleise Hoffmann (PT-PR), Fátima Bezerra (PT-PN), Lídice da Matta (PSB-BA), Regina Souza (PT-PI), Vanessa Graziottin (PCdoB-AM) e Kátia Abreu (MDB-MT) ocuparam a mesa diretora do Senado e tentaram impedir, na marra, que a casa votasse a Reforma Trabalhista apresentada pelo governo para tentar estimular a geração de empregos no país. Se aquela medida não tivesse sido aprovada, o quadro do desemprego iniciado no governo de Dilma Rousseff teria ficado ainda pior. Mas para aquele grupo de senadoras, constranger o governo parecia ser mais importante do que estimular a criação de empregos.
É provável — e, mais do que isso, é desejável — que uma cena grotesca com aquela nunca volte a se repetir no parlamento. Com as bancadas expressivas que a futura oposição conseguiu formar na Câmara e no Senado, é bem provável que o Congresso crie dificuldades para o novo governo. Alguns analista consideram que Lula não terá, mesmo assim, dificuldades para formar a maioria necessária para aprovar as medidas de seu interesse e que estaria disposto — como se tornou uma tradição no país — a oferecer apoios e cargos aos parlamentares que se comprometessem a apoiá-lo. A história, porém, está cansada de mostrar que o santo que protege esse tipo de acerto tem os pés de barro e que esses acordos se rompem com facilidade.
Se há alguém que sabe disso é Lula. O presidente eleito já provou diversas vezes ao longo de sua trajetória política, iniciada na luta sindical, que tem habilidade suficiente para enfrentar situações complexas e sair delas com acordos adequados a seus interesses. Justamente por causa disso, ele é o primeiro a saber que, desta vez, o acordo terá que ser buscado num ambiente mais hostil do que nas vezes anteriores. E que terá no calcanhar um grupo de parlamentares aguerridos e dispostos a criar dificuldades.
Se não errar na chegada e não criar embaraços para um mercado que já se mostrou que está mais do que disposto a apoiá-lo e de quem ele não tem qualquer motivo para se queixar, talvez consiga criar em torno de si um ambiente favorável. Tão favorável quando o que construiu nos momentos iniciais de seu primeiro governo, em que a tentativa incipiente de oposição e os efeitos de suas escorregadelas verbais foram anulados pelo slogan “deixe o homem trabalhar!”
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