Arte coluna Nuno 15 janeiro 2023Arte Paulo Esper
Publicado 15/01/2023 06:00
Ninguém que tenha participado dos atos do último domingo, em Brasília, tem o direito de buscar no tratamento frouxo dado pelas autoridades a manifestantes de esquerda que protagonizaram cenas semelhantes no passado a justificativa para pedir que se passe uma borracha sobre o que aconteceu. As cenas vistas na Praça dos Três Poderes, que culminaram com a invasão do Palácio do Planalto, do plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Câmara dos Deputados, são deploráveis sob qualquer ponto de vista e, à luz das palavras escritas nas bandeiras que muitos deles empunhavam, devem ser punidas com o rigor da lei.
Ordem e Progresso é o que diz o lema positivista estampado na Bandeira Nacional. Bandeira que, por sinal, foi apropriada como símbolo de um movimento político que procurava se distinguir dos adversários que (na visão dos próprios manifestantes que saiam às ruas vestidos de amarelo) não passavam de um bando de arruaceiros vestidos de vermelho. Sendo assim, e em nome da coerência, se há pessoas neste país que não tinham o direito de invadir prédios públicos e de sair quebrando tudo que encontrassem pela frente — inclusive obras de arte e objetos de valor histórico — são apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro.
É preciso que o fato, a partir de agora seja investigado e os responsáveis punidos de acordo com o que estabelece a lei — respeitando-se, é caro, as salvaguardas que garantem aos acusados o amplo direito à defesa e um julgamento justo. É preciso investigar, atribuir responsabilidades, separar os inocentes úteis daqueles que, de fato, organizaram a balbúrdia e, no final de tudo, dar o devido encaminhamento legal ao problema. Mas também é preciso, em nome das necessidades que o país vem acumulando nos últimos anos, não reduzir o debate nacional a esse episódio lamentável.

INGENUIDADE OU IGNORÂCIA — As manifestações do domingo passado, mais do que expor as posições equivocadas de um grupo de pessoas que parece não ter a menor compreensão sobre a realidade institucional brasileira, foram um ato que já nasceu destinado ao fracasso. Ninguém em sã consciência seria capaz de imaginar que as Forças Armadas se renderiam à pressão dos acampamentos armados em frente à sede do Comando Militar do Leste (CML), no Palácio Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, e em dezenas de unidades militares pelo país afora, e saíssem às ruas para tomar o poder — a exemplo do que fizeram em 1964.
É preciso aprender com a história. O cientista político Renê Armand Dreifuss mostrou nas mais de 800 páginas de seu livro '1964: A Conquista do Estado', o longo e demorado processo de construção da aliança que reuniu empresários, setores expressivos da sociedade civil, intelectuais, grupos da classe média, parte do clero e, lógico, os militares em torno de uma proposta que ia muito além da simples tomada do poder. Imaginar que algo semelhante pudesse estar sendo construído agora para dar sustentação a um movimento como o de domingo passado é algo que revela ignorância ou, na melhor das hipóteses, ingenuidade.
Do ponto de vista político — e com base nos mesmos atos de vandalismo que cansaram de condenar nos últimos anos —, os manifestantes bolsonaristas acabaram disparando um tiro contra o próprio pé. Isso não significa, porém, que eles tenham se tornado cartas fora do baralho eleitoral brasileiro. Quem imaginar que a condenação pública ao movimento e que a mão pesada que a Justiça e os demais poderes ameaçam lançar sobre os manifestantes serão suficientes para unir o país em torno do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de seu governo estará sendo tão ingênuo quanto os próprios bolsonaristas. Estes se imaginaram fortes os bastante para ensaiar um golpe de Estado a partir de atos de vandalismo realizados numa tarde de domingo, quando não havia viva alma trabalhando nos prédios públicos invadidos. Os outros não pode imaginar que, pela facilidade com que os manifestantes foram contidos, presos e expostos à execração pública, que ele ficarão quietos a partir de agora.
O país está dividido e não é de hoje. O que aconteceu no domingo passado é consequência de um processo iniciado há anos. Desde o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, as pontas mais radicais de um lado e do outro vêm se tornando cada vez mais exaltadas. Cada um dos lados aponta o dedo na direção do adversário, o acusa de responsável por todos os males do país e se recusa a admitir os próprios equívocos. E, pior do que isso, reduz a prática política numa eterna campanha eleitoral.

A LIÇÃO DA HISTÓRIA — Se nenhuma providência for tomada agora por aqueles que têm a obrigação de agir para resolver o problema, os próximos quatro anos serão marcados pelo mesmo clima de intransigência que tem pautado as disputas presidenciais mais recentes. E mais: se existe alguém que tem o dever e a autoridade para promover a união do país neste momento e que tem o poder de agir para que o país encontre um caminho diferente do que vem trilhando nos últimos anos, essa pessoa é o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Culpar Bolsonaro ou seus seguidores pelo que vier a acontecer daqui por diante será, com todo respeito, uma forma de Lula fugir à responsabilidade que assumiu no momento em que se dirigiu à sociedade para pedir votos. Culpar o clima adverso criado por adversários que se recusam a admitir a derrota nas urnas é, da mesma forma, uma maneira de fugir de um problema com o qual o novo governo precisa lidar. Lula foi eleito para governar — e isso inclui buscar soluções para os problemas criados pelos adversários. Se não encontrar essa solução, estará abrindo caminho para a volta de Bolsonaro, ou de alguém que pense como ele, em 2026.
É possível governar depois de enfrentar um movimento ruidoso com apenas uma semana no cargo? A resposta é sim! O que está acontecendo no país não é inédito. A história de nossa democracia reserva um lugar de honra para um presidente que, ao ser eleito, encontrou um quadro político tão ou mais difícil do que o atual e demonstrou habilidade suficiente para unir a sociedade em torno de suas propostas. Foi tão eficaz na construção de um projeto para o país que, quanto mais a oposição tentava espremê-lo contra a parede, mais a sociedade o aplaudia e apoiava. Seu nome, Juscelino Kubitschek de Oliveira.
Assim como acontece atualmente com Lula, JK se deparou com uma rebelião importante — e, em certa medida, muito mais perigosa — dez dias depois de tomar posse, no dia 31 de janeiro de 1956. Dois oficiais da Aeronáutica, o major-aviador Haroldo Veloso e o capitão José Chaves Lameirão, tomaram um avião militar na base aérea do Campo dos Afonsos, no Rio de Janeiro, e voaram para a base de Jacareacanga, no Pará. Dali, receberam apoio de soldados da guarnição local e tomaram os municípios de Santarém e de Itaituba, no Pará. O governo enfrentou dificuldades para reprimir o movimento e ainda precisou lidar com a insubordinação do comando da Aeronáutica — que se recusava a punir os revoltosos. No final, alguns dos envolvidos — entre eles, Lameirão — fugiram do país e se exilaram na Bolívia. Haroldo Veloso foi preso e processado.
É aí que entra a habilidade de JK. Veloso e os demais foram beneficiados por um decreto de Anistia assinado pelo próprio presidente e continuaram conspirando. Voltaria à carga com a Revolta de Aragarças, em 1959 — mas a chance de sucesso de ações destinadas a enfraquecer o governo foram inversamente proporcionais ao barulho que causaram. Isso porque o presidente, ao invés de se preocupar com as ações dos que se opunham a ele, fez o que deveria fazer: trabalhou, fez o país crescer, gerou empregos e oportunidades e, com isso, construiu o antídoto que torna qualquer governo imune a qualquer risco de golpe. E mais: ele sabia exatamente o que estava fazendo.
Assim que assumiu, no dia 1º de fevereiro de 1956, JK assinou o decreto que lançou o Plano de Metas, um plano estratégico bem estruturado, com ações que se propunham a fazer o país crescer os famosos “cinquenta anos em cinco”. Seu governo implantou a indústria automobilística nacional, abriu ou pavimentou rodovias estratégicas, ampliou a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), criou a Embratel e transferiu a capital para Brasília (medida que gerou problemas para o Rio, mas que foi, sem dúvida, importante para o Brasil). Mais do que isso, mudou a fisionomia de um pais que, em seu governo, melhorou a autoestima e viveu uma era de otimismo sem precedentes.
JK é criticado por ter feito tudo o que fez sem se preocupar com o impacto de suas medidas sobre as contas públicas — mas isso é uma história que merece ser discutida com mais detalhes em uma outra ocasião.

AVENTURAS GOLPISTAS — Ninguém está sugerindo, aqui, que Lula faça como JK e anistie os desmiolados que se acharam capazes de abalar a República com um movimento ridículo, inoportuno e sem qualquer possibilidade de sucesso. Eles são adultos, têm a devida noção da dimensão de seus atos e devem pagar pelo que fizeram. Mas o presidente pelo menos poderia se apoiar no exemplo do simpático Nonô (como JK era chamado pelos mais próximos) e elaborar um plano que, ao demonstrar claramente sua intenção de promover o desenvolvimento, elimine os ruídos capazes de alimentar aventuras golpistas como a do último domingo. Lula volta e meia diz que, em seu governo, todos os brasileiros terão quatro refeições por dia e ainda comerão picanha no final de semana. Mas ainda não explicou as medidas que pretende adotar para cumprir essa promessa.
Por mais que seu passado o credencie, Lula precisa provar que está à altura deste que é o maior desafio de sua carreira. O presidente é, até aqui, o principal — para não dizer o único — beneficiário do clima de divisão que tomou conta só país nos últimos quatro anos. Talvez não tivesse chegado a seu terceiro mandato presidencial (legitimamente conquistado nas urnas, mas por uma margem irrisória de votos) se o país não tivesse embarcado no clima de divisão entre ele e Bolsonaro, que eliminou qualquer possibilidade de uma "terceira via" ou algo que o valha.
Isso, porém, é página virada. O presidente precisa, agora, demonstrar por meio de propostas claras e de ações concretas que o povo estava certo ao elegê-lo. Isso ainda não aconteceu — e tudo o que se tem do presidente são as promessas genéricas de uma vida melhor para o povo. É ainda cedo para cobrar do presidente resultados concretos para um país que mergulhou, a partir de 2014, na maior crise de sua história. Mas é tempo suficiente para cobrar clareza.
Voltando ao exemplo de JK, seu governo tinha uma noção clara do que deveria fazer já no dia da posse. No caso de Lula, a impressão que se tem é a de que cada ministro tomará seu próprio rumo, sem qualquer unidade ou coordenação que os coloque para caminhar na mesma direção. Ainda é cedo para dizer se o governo de Lula dará certo ou errado. Tomara. Mas tomara mesmo, que dê certo — mesmo porque, o povo brasileiro pagará um preço altíssimo caso o clima de divisão dos últimos quatro anos se prolongue pelos próximos quatro.
(Siga os comentários de Nuno Vasconcellos no Twitter e no Instagram: @nuno_vccls)
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