Publicado 05/03/2023 01:00
Sai governo, entra governo e, em pelo menos um ponto, as decisões tomadas no Palácio do Planalto e na Esplanada dos Ministérios seguem o caminho que têm seguido nos últimos anos. Alguns hábitos recorrentes em matéria de política fiscal parecem passar de uma administração para a outra sem levar em conta as simpatias pessoais do presidente pelas ideias de direita, como era o caso de Jair Bolsonaro, ou a preferência pela esquerda, como acontece com Luiz Inácio Lula da Silva. Em algumas situações, eles seguem caminhos tão parecidos que as medidas de um poderiam perfeitamente ter sido tomadas pelo outro sem que nenhum deles precisasse se justificar ao anunciá-las.
Uma dessas semelhanças, talvez a principal delas, diz respeito à realidade fiscal do país — e antes de prosseguir, é bom deixar claro que nada do que será dito aqui significa a defesa do tal “Estado mínimo” nem se propõe a eliminar gastos sociais para se alcançar o equilíbrio das contas públicas. Pelo contrário. O que se defende é uma maior racionalidade na gestão do Tesouro Nacional justamente para que sobrem mais recursos para os investimentos sociais e as obras de infraestrutura essenciais para o desenvolvimento do país.
Dito isso, é preciso defender a necessidade de se alterar a maneira com que o governo (qualquer governo) encara as contas públicas. Diante da necessidade permanente de se buscar o equilíbrio, a solução encontrada nunca é a de apertar o cinto e reduzir as despesas correntes — aquelas que se destinam ao custeio da máquina. Sempre que a situação aperta, os governos dão um jeito de encontrar uma saída que lhes permita continuar gastando sem reduzir em um tostão as despesas com os salários e com a previdência do funcionalismo público. Quando os recursos para alimentar esse monstro guloso e obeso em que se transformou o Estado brasileiro ficam minguados, a saída sempre acaba sendo a de tirar mais dinheiro da sociedade. Não importa que o país esteja cada vez mais pobre. O que parece importar é que o governo sempre tenha dinheiro para manter a máquina em operação.

IMPOSTOS SOBRE COMBUSTÍVEIS
Foi o que se viu mais uma vez na semana passada. Para conseguir cumprir a meta orçamentária, que prevê para este ano uma arrecadação de R$ 28,8 bilhões com impostos federais sobre os derivados de petróleo, o governo resolveu voltar a cobrar alguns impostos sobre combustíveis que tinham sido cortados pelo presidente Jair Bolsonaro. Em tempo: ao fazer o corte, o ex-presidente não levou em conta qualquer estudo técnico nem procurou uma forma inteligente para compensar a queda de arrecadação provocada pela medida.
A única preocupação naquele momento parecia ser a de impedir que a alta elevada no preço dos combustíveis, motivada por uma política de preços que dá peso excessivo à cotação internacional do barril do petróleo, continuasse pressionando a inflação, que isso prejudicasse sua popularidade e reduzisse suas chances nas eleições do ano passado. Exatamente pelos mesmos motivos — ou seja, as possíveis consequências políticas da decisão —, pessoas do círculo político mais próximo de Lula tentaram de todas as maneiras impedir a volta dos tributos, sem levar em conta os efeitos que essa medida poderia ter sobre a qualidade das contas do governo.
No cálculo político que foi feito, a volta imediata dos impostos congelados poderia provocar uma alta exagerada nos preços dos combustíveis, o que afetaria a popularidade de Lula logo na largada de seu novo mandato. A solução encontrada pela equipe do Ministério da Fazenda foi a de taxar a gasolina e o etanol com uma alíquota inferior à que vigorava antes de Bolsonaro mandar suspender a cobrança do PIS/Confins sobre todos os combustíveis. O óleo diesel, o gás natural e o gás de cozinha continuam isentos. Além disso, o governo criou a taxação de 9,2% sobre o petróleo cru exportado pelo Brasil.

DIGITAIS DO PLANALTO
Bolsonaro estava certo ao criticar a política de preços da Petrobras e a denunciar suas consequências mais nocivas — que eram a pressão sobre a inflação e o peso excessivo no bolso do consumidor. O ex-presidente, no entanto, cometeu um erro grave na maneira de conduzir o problema. Ao invés tratar como inimigos os presidentes nomeados por ele para dirigir a estatal, como tinha o hábito de fazer, ele poderia perfeitamente ter ordenado que se buscasse uma nova política de preços para os combustíveis.
O novo presidente da empresa, Jean Paulo Prates, já anunciou que pretende rever a política de preços e que o critério de reajuste deixará de basear na cotação internacional do barril. Faz sentido. Num país que produz quase todo petróleo que consome e que os carros são abastecidos por um “blend” que contém 73% de gasolina e 27% de etanol, definir o preço dos combustíveis pela cotação internacional chega a parecer pouco inteligente. Tomara que essa política prometida por Prates não seja marcada pela mesma inépcia e pela mesma falta de critérios técnicos que marcaram, no governo Dilma Rousseff, a passagem de Graça Foster pela presidência da estatal. Tomara.
A pergunta é: o que justifica uma presença tão destacada da Petrobras e de sua política para os preços dos combustíveis num artigo que, a princípio, se propunha a discutir os problemas fiscais do governo? A resposta não poderia ser mais simples. Enquanto a empresa continuar ditando os preços dos combustíveis e detendo o monopólio do refino de petróleo — que já acabou no papel, mas continua a existir na prática — e enquanto o governo continuar determinando o que ela pode e o que ela não pode fazer, todas as decisões tomadas no edifício da Avenida Chile, nº 65, no centro do Rio, terão as digitais do Palácio do Planalto. E como os preços dos combustíveis têm impacto sobre a inflação e são um componente importante para a arrecadação, e como essas suas variáveis estão sob responsabilidade do governo, é impossível dissociar uma estatal gigantesca como a Petrobras das finanças públicas do país.

DEMONSTRAÇÃO DE IMPROVISO
Retomando o tema das finanças públicas, a volta da cobrança de impostos sobre os combustíveis, com alíquotas inferiores às que vigoravam no momento em que Bolsonaro resolveu zerá-las não é, por si só, um problema. Embora possa gerar alguma pressão sobre a taxa de inflação, a cobrança desses impostos é muito menos nociva do que as consequências dessa renúncia tributária sobre as contas públicas. Já naquilo que diz respeito à cobrança de 9,2% sobre as exportações de petróleo pelos próximos quatro meses, medida com a qual o governo espera obter R$ 6,6 bilhões, a história é outra.
Nas economias maduras e estáveis, impostos dessa natureza não são usados com a finalidade de arrecadar dinheiro. Normalmente eles se prestam a regular o mercado e a corrigir distorções setoriais momentâneas. Adotar medidas como essa apenas para cobrir um rombo causado pela decisão do atual governo de não sofrer desgastes políticos caso decidisse revogar de uma só vez as medidas populistas adotadas por Bolsonaro é um risco — nem tanto por seus efeitos imediatos, mas por significar um precedente perigoso. Se a moda pegar, o mesmo que está sendo feito hoje com o petróleo e atingindo principalmente a Petrobras pode ser utilizado amanhã para taxar as exportações de soja e outros produtos do agronegócio.
Seja como for, a adoção de medidas como essa é mais uma demonstração do improviso que cerca a realidade fiscal brasileira. O critério que vigora no país (e isso não é uma característica exclusiva do governo Lula, mas um traço cultural da administração pública) parece ser o de primeiro decidir os gastos que serão feitos. E só depois ir atrás do dinheiro para financiá-los.

CATEGORIAS PRIVILEGIADAS
O país precisa de uma reforma fiscal profunda, que confira racionalidade aos impostos e garanta arrecadação suficiente para manter a máquina funcionando — sem prejuízos para os programas sociais e para os investimentos que precisam ser feitos. Também precisa de uma reforma administrativa digna desse nome, que permita a redução da máquina pública e evite que o país inteiro trabalhe para garantir a boa vida das categorias mais privilegiadas do funcionalismo federal.
O Mapa da Riqueza divulgado recentemente pela Fundação Getúlio Vargas mostra que, entre as dez ocupações mais bem pagas do país, seis são de carreiras ligadas ao Serviço Público Federal. O mesmo estudo mostra que, enquanto a renda por habitante no Distrito Federal é de R$ 3.148 por mês, em São Paulo, o estado mais rico da União, ela é de R$ 2.063. O Rio de Janeiro vem em terceiro lugar com R$ 1.754. Estados conhecidos pela posição de destaque no agronegócio, que tem sido o setor mais dinâmico da economia, ocupam posições modestas nessa lista. No Mato Grosso, a renda mensal por habitante é de R$ 1.363 e no Mato Grosso do Sul, de R$ 1.350.
O significado desses números não poderia ser mais claro. Enquanto o país não inverter essa lógica e garantir aos habitantes dos estados que produzem uma renda superior à da burocracia federal que, por definição, deveria atendê-los em suas necessidades, a situação ficará como está. Com um detalhe: esse desequilíbrio e essa inversão de valores são as causas primárias da paralisia que a economia brasileira vive há cerca de uma década. Sim! A economia não cresce porque a sociedade é obrigada a pagar muito em troca do pouco que recebe do governo.
Nos últimos tempos, a economia brasileira sobre de uma síndrome que os economistas batizaram de “voo da galinha”. A ave doméstica, como se sabe, é incapaz de se manter no ar por muito tempo e, mais ainda, de alcançar altitudes elevadas. Seus voos são difíceis e de curta duração, não alcançando mais de dois ou três metros a cada tentativa. O mesmo tem acontecido com a economia — que, por causa do desequilíbrio fiscal e do peso excessivo da máquina do estado, é incapaz de alçar um voo convincente que a leve ao tão esperado crescimento sustentável.
Já pensou o que aconteceria se uma economia pujante como a brasileira se apoiasse em regras estáveis para seguir em frente? Quem acompanha os dados de desempenho sabe que, aos trancos e barrancos, o país está se livrando das dificuldades mais pesadas e entrado num momento melhor do que o de um ano atrás. Uma reportagem publicada por este jornal na quinta-feira passada, assinada pela repórter Ana Fernanda Freire, mostra que o nível de emprego na cidade do Rio de Janeiro fechou o quarto trimestre de 2022 num patamar 18% acima do que se encontrava nos três últimos meses de 2020.
Pelo levantamento feito pela Secretaria Municipal do Desenvolvimento Econômico com base nos números da PNAD Contínua do IBGE, o número de trabalhadores formais informais no Rio nesse período saltou de 2,8 milhões para 3,3 milhões. Tomara que a cidade, o estado e o país continuem crescendo. Para que isso aconteça, porém, os empresários que geram as oportunidades precisam ter clareza do ambiente fiscal em que estão atuando. E o governo, fazer a sua parte e permitir que eles trabalhem num ambiente mais saudável.
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